“A alma é a voz do povo africano na resistência contra a discriminação”

30-08-2022 11:19

 

 

“Do escravo foi tirada a terra, o nome, a família

Foi tirada a pátria, a casa, a existência

Tiraram-lhe o corpo e ficou de alma nua

Até da saudade o escravo foi privado

Saudade de quê, se não tem nada nem ninguém?

Por isso rogamos: Deus, faz então o teu milagre

E cura a angústia dos africanos nascidos na América”

                                                                                                                                                           Paula Chiziane, escritora Moçambicana

 

 

            Num artigo “Racismo, espaços, representação e a voz das mulheres em Portugal” de Bianca Rosina Matitia[1] baseado especialmente a partir dos estudos de Bell Hooks (2019ª – 2019b) e de Grada Kilomba (2019) sobre reflexões em torno de representação, voz e racismo em torno da ocupação dos espaços predominante masculinos, brancos e heterossexuais por parte das mulheres africanas num contexto em que se recuperam posições coloniais de sujeito e objeto. A autora cita a pesquisadora portuguesa Joana Gorjão Henriques que “o passado reatualiza os nossos dias.” Joana Henriques destaca dentro de outros fatores, a ausência de representavidade, numa discrepância entre os números de negros que vemos na rua e o número de negros nos lugares de liderança na sociedade (2017, p.13). O que espelha um sistema que discrimina pela cor da pele.

            Todavia, apesar do estereotipo, começam a existir ventos de mudança e pelo trabalho árduo e afinco as pessoas de outras raças começam a marcar presença nos mais diversos quadrantes em lugar de destaque. Francisca Van Dunem, ocupou um alto cargo no Estado Português no XXI Governo Constitucional.

        Contudo, a autora do artigo “Racismo, espaços, representação e a voz das mulheres em Portugal” de Bianca Rosina Matitia também se perspetiva nessa transmutação social que se começa a diluir na sociedade portuguesa destacando o exemplo de Joacine Katar Moreira. A eleição da deputada de raça africana como represente única do partido “Livre” nos assentos parlamentares em 2019. A presença  de Joacine no parlamento faz com que a sua voz seja (tenha de ser) ouvida. Bianca Matitia considera esse acontecimento algo marcante e afirma que com a sua história, realidades e identidades próprias a sua presença no lugar do sujeito destabiliza  a  antiga estrutura “colonial”[2] que ainda se encontra subjacente na sociedade portuguesa. A fala marca a presença dos sujeitos, é um ato de coragem e assim sendo representa uma ameaça aqueles que exercem o poder opressivo, aquilo que é ameaçador deve ser necessariamente apagado aniquilado e silenciado (Hooks, 2019 a, p.36-37). “ Não é uma transmissão de objeto para sujeito -a voz liberta”.

        Bianca Matitia recorda o discurso de Joacine Katar Moreira ao ter sido eleita “(…) É muito importante historicamente nunca houve antes uma pessoa negra e mulher cabeça-de-lista numa eleições legislativas. É um exemplo não só para as pessoas de origem africana mas igualmente para todos os portugueses e portuguesas que tal como eu não são oriundas de uma família de elite financeira, intelectual, política. Isto é dar um sinal inequívoco de que há espaço para toda a gente e que esse espaço deve ser conquistado mas também deve ser construído”[3].

 

A literatura como afirmação da mulher africana

            A autora reflete também a visibilidade do papel da mulher no campo literário “Proponho, a par disso, pensarmos o espaço literário construído pelo ato da escrita, como um lugar onde a ação transformadora passa a ser possível. Na medida em que entendemos a literatura como forma de representação e, portanto, como um espaço em que o escritor/escritora fala no lugar/ em nome dos outros, neste “espaço onde os interesses e perspetivas sociais interagem e entrechocam, não podemos deixar de indagar quem é, afinal, esse outro, que posição lhe é reservada na sociedade e o que o seu silêncio esconde” (Dalcastagné, 2012, p. 16)

Refere ainda que a reflexão levanta a questão acerca da representação que se circunscreve política, ética e esteticamente e para além do mais, repercutem na possibilidade de um espaço aberto à   “diversidade de perceções do mundo, mas, que depende do acesso à voz e não é suprida pela boa vontade daqueles que monopolizam os lugares da fala”.

            Para Bianca Matitia, não só a representação política, mas, também o ato de escrever demarca a transição de objeto/sujeito.  Por isso, escrever afirma Grada Kilomba “emerge como um ato político”, (2019, 28). Mas, se configura também como um ato de descolonização na qual quem escreve se opõe às posições coloniais torna-se escritora validada/o e legitimada/o e ao reinventar a si mesmo/a nomeia uma realidade que fora nomeada erroneamente ou sequer fora nomeada. (Kilomba, 2019, p. 28 grifos da autora). A literatura desta forma, possibilita a construção duma “contranarrativa de memória colonial”  (SCHMIDT, 2016, p. 119).

 

 

Racismo não se consegue opor à excelência: Paula Chiazine vence importante  prémio Camões

 

 

            Segundo  uma notícia divulgada pelo Instituto Camões no dia 21 de Outubro de 2021, a escritora moçambicana Paula Chiziane é vencedora do Prémio Camões 2021. O jurí foi unânime na atribuição desta alta distinção literária. O Jurí destaca a sua vasta a sua vasta produção e receção crítica, bem como o reconhecimento acadêmica e institucional da sua obra. O Jurí referiu também a importância que dedica nos seus  livros aos problemas da mulher moçambicana e africana.

            Paulina Chiziane foi  a primeira mulher a publicar um romance em Moçambique em 1990  “Balada de Amor ao vento”.

            Podem ainda destacar obras como  “Ventos de Apocalipse”, “O Alegre Canto da Perdiz” (2008), “As andorinhas” (2009), “Na mão de Deus”, “Por quem vibram os tambores do além” (2013), Ngoma Yethui: o curandeiro e o novo testamento” (2015), “O Canto dos escravos” (2017), O curandeiro e o Novo testamento” (2018). Em 2021 lançou em co-autoria com o Dionísio Bahule o livro “A voz do cárcere”, depois de ambos entrarem nas prisões e ouvirem os reclusos – ela escutou os homens e elas as mulheres.

            As suas obras foram publicadas em Portugal e no Brasil e estão traduzidas em diversas línguas: inglês, alemão, italiano, espanhol, francês, sérvio e croata.

            Paulina Chiziane nasceu em Manjacaze província de caza no sul de Moçambique em 1955. Estudou Linguística em “Maputo”. Esteve ligada na Juventude à política apoiando a Frelimo (Frente de Libertação Nacional), mas acabou por abandonar as lides políticas e dedicou-se inteiramente à escrita.

            Falante das Línguas Chope e ronga, aprendeu também português na escola de uma missão católica.

            Atualmente vive e trabalha na Zambézia. Ficcionista publicou vários contos na Imprensa (Domingo, na “Página Literária” e na revista “Tempo”).

            Já em 2014 tinha sido agraciada pelo Estado Português com o grau da “Grande Oficial da Ordem do Infante Dom Henrique”.

            Em declarações à Agência Lusa a escritora de 66 anos confessou-se confusa “uma surpresa muito boa para mim, para o meu povo, para a minha gente, que em áfrica se escreve português, aprendido em Portugal.”

            Realçou ainda que o Prémio Camões  de 2021 serve para valorizar o papel das mulheres numa altura em que o seu trabalho ainda é  subvalorizado tendo afirmado que “afinal a mulher tem uma alma grande e tem uma grande mensagem para dar ao mundo.

            Este prémio serve para despertar as mulheres e fazê-las sentir o poder que têm por dentro”.

 

Um “lamiré” das obras de Paulina Chiziane:

  • Balada de Amor ao Vento

Sarnau e Mwanda protagonizam esta estória de amor. Da Juventude à idade madura. Com eles percorremos os dias, os meses, os anos, os encontros e desencontros, a dolorosa separação, o desespero, o sofrimento, a alegria, as lágrimas e os sorrisos.

Editora Caminho: Edição 08.2016

 

  • O Alegre Canto da Perdiz

Delfina é uma mulher bela. Nesta obra retrata-se a vida de Delfina, dos contrastes, dos conflitos, das confissões e contradições. É a história de uma mulher de raça negra, a história trágica da perda do sonho. Existe um conflito da escolha de caminhos entre o Amor que sente  por José Montes e “eliminar a sua raça para ganhar a liberdade” procurando um homem branco que lhe dará o alimento e o conforto que deseja. Mas o que é o amor para uma mulher negra. Na terra onde as mulheres se casam por encomenda na adolescência.

No livro assiste-se um diálogo consigo própria, a conhecida escritora moçambicana mistura imaginação, fantástico, misticismo num retrato poderoso e peculiar da sociedade e da mulher africana.

Editorial: Caminho

 

  • Niketche

Uma história de poligamia

Rami casada há 20 anos com Tony, um alto funcionário da polícia de quem tem vários filhos descobre que o partilha com várias mulheres, com quem ele constitui outras famílias. O seu casamento de “papel passado” e aliança no dedo resume-se afinal a um irónico drama de que ela é afinal uma das personagens. Numa procura febril Rami obriga-se a conhecer outras. O seu marido é polígamo. Na vida dolorosa que agora começa, séculos de tradição e costumes e crueldade da vida e diferenças abismais da cultura entre o norte e o sul da terra.

E só a sabedoria infinita que o sofrimento provoca vai apontando o rumo num labirinto de emoções, de revelação, de contradições e perigosas ambiguidades. No livro debate-se o valor e  o significado da poligamia e monogamia, que sentido assumem na cultura, institucionalização, hipocrisia, comodismo, convenção ou a condição natural de ser humano no quadro da inteligência e dos afetos.

            Em Chiziane estende-se o fio de Ariadne e a guiar-nos com o desassombro, a perícia e a verdade de quem conhece o direito e o avesso da aventura da vida humano.

Editorial: Caminho

 

 

 

Bibliografia de apoio:

 

  • Biblioo.info/a-poesia-resistencia-de-paulina-chiziane
  • Racismo, espaços de representação e a voz das mulheres negras em Portugal, Bianca Rosina Matitia (https://seer.ufrgs.br/nauliteraria)
  • Instituto-camões.pt/sobre/comunicação/noticias/paulina-chiziane-vence-premio-camoes (artigo: “Paulina Chiziane vence Prémio Camões”, publicado em 21 de Outubro de 2021, 12:46)
  • Wook.pt – Sinopses de Livros - Pauline Chiziane
  • Pt.wikipedia.org/wiki/colonia

 

 

 

Fotografia: António Silva/Lusa  retirada da página Institucional do Instituto Camões

 

 

 

 

 

 

 


 

 

 

 



[1] A autora desta reflexão é doutoranda em Literatura no Programa de Pós-Graduação em literatura da Universidade Federal de Santa Catarina (PPGUT/UFSC), Mestra em Literatura, Licenciada em Letras, habilitação em Língua Portuguesa e Literatura de Língua Portuguesa entre outras certificações e trabalhos relevantes.

[2]  Em termos históricos,  colonização assume o carácter de dominação de povos que ocupavam determinado território - foi dessa forma que Roma colonizou quase toda a  Europa  sendo um exemplo a Hispânia  região onde hoje fica Portugal e Espanha.  (Wikipédia). A autora Bianca Matitia  usa o termo colonial fazendo uma acepção ao passado histórico em que Portugal colonizou algumas regiões de África, apesar da autonomia dos países africanos no século XX e o colonialismo ser já um arcaísmo político, segundo a autora o povo africano ainda se sente dominado como no antigo sistema colonial (Nota pessoal)

[3] Claro que é preciso frisar que a eleição de Joacine Katar Moreira ter tudo para correr bem acabou por se tornar desastrosa. Joacine Katar Moreia afastou-se das linhas orientadoras do partido que a elegeu e acabou por perder o  seu apoio,  continuou no Parlamento mas em nome individual, com menos  “tempo de antena” (Nota Pessoal)