Censura de livros na América: Porque é que os livros são sempre tão temidos?…

02-03-2023 14:50

 

 

    Os Estados Unidos transmitem-nos sempre uma ideia  de liberdade e de Democracia, nos meandros desse espírito democrático e acolhedor surgem grandes clivagens sociais e restrições à liberdade, afetando sobretudo minorias sociais e étnicas.

            É  a eterna luta entre o mundo idealizado por Martin Luther King, ficando célebre  a sua mítica frase “I have a dream…” que idealizava que que todas as pessoas fossem iguais e lutou acerrimamente pelos direitos das pessoas afro-americanas.

            Uma luta que não foi inglória, mas, que ainda hoje é muito atual. Um país de todos os direitos mas com grandes confrontos de origem e discriminação racial, inclusivamente exercida pelas autoridades policiais. Ainda está bem presente na nossa memória o caso  de George Floyd que foi sufocado com o joelho até à morte sem direito a defesa que desencadeou uma onda de contestação e de indignação a nível mundial e reativou o movimento de 2013  “black lives matter” que segundo alguns organizadores das manifestações inspira-se nas contestações que tiveram lugar nos anos 80.[1]

            Por outro lado, também a política de acesso ao país não é tão liberal e democrática como se possa pensar. As fronteiras são altamente controladas para impedir sobretudo  a invasão de imigrantes da América latina, que utilizam  a fronteira entre o México para aceder a terra de todos os sonhos. Ninguém esquece a loucura de Trump e obsessão de construir o famoso muro a lembrar o malfadado “muro de Berlim” na Alemanha. Durante a Era Trump a onda de imigração dos países  mais pobres da américa latina  eram barrados com forte violência policial e quem não se recorda da atrocidade de separar os pais e os filhos menores e conduzi-los de forma não acompanhada para campos de  detenção sem condições nenhumas. Foi mesmo uma atrocidade histórica que se viveu na época  e ainda o estadista dizia que tinha o sonho de “make América great Again”[2]

Porém se pensávamos que  com o fim da “Era Trumpista” que  as atrocidades, as assimetrias sociais e as restrições à liberdade tinham findado estávamos muito enganados. Os movimentos mais conservadores dos Estados Unidos continuam a fazer das suas.

Um texto da jornalista Adriana Peixoto consultado em 28/02/2022 e com a data de 22/09/2022 com o título “Inquisição moderna nos EUA, grupos conservadores barram 1600 livros de escolas.

Ao lermos o desenvolvimento da notícia compreendemos que os grupos políticos mais conservadores estão a fazer pressão para proibir os livros nas escolas que abordem o racismo, a igualdade de género, educação sexual e assuntos LGBTI.

No ano de 2022 houve mais 2500 instâncias de livros que foram barradas nas escolas após serem contestados por grupos conservadores e associações de pais.

Estes dados são de uma organização não governamental “Pen América” que entre outras questões atua sobre a liberdade de expressão da literatura publicada.

Segundo o artigo acima citado mais de 5000 escolas tiverem de banir o acesso dos alunos a alguns livros.

Em Novembro de 2021, por exemplo, o Governador Republicano Henry Mcmaster da Carolina do Sul exigiu que o livro “Gender Queer : A memoir de  Maia Kobabe fosse removido das bibliotecas por ser considerado pornográfico.

O livro “All boys aren´t blue” de George M Johnson foi também barrado de 19 agrupamentos.

E outro livro, “Out of darkness” de Toni Morrison, prémio Nobel em 1993 foi proibido em 24 agrupamentos escolares.

            O relatório desta organização estima que

  • 41% dos livros afetados tenham personagens ou abordam temas LGBTI.
  • 40% personagens relacionadas com as minorias etnícas
  • 22% conteúdos sexuais
  • 21% temas racistas

Outra notícia relacionada com este facto datada 26 de Fevereiro de 2023 dá conta que os professores na Flórida , EUA, são obrigados a esconder centenas de livros que são retirados das bibliotecas e das salas de aula.

Segundo a notícia a razão deste comportamento drástico  dos professores é a lei HB 1467 aprovada pelo órgão legislativo dos Estados Unidos na Flórida e sancionada pelo Governador Republicano Ron de Santis do Partido Republicano.

Segundo os promotores o objetivo da lei aprovada em março de 2022 é proteger os direitos dos pais de controlar  o conteúdo que os  seus filhos têm acesso.

No entanto, os críticos da lei consideram que se trata de um instrumento de censura – um a arma usada pelos conservadores contra a cultura woke, termo adoptado nos Estados Unidos para designar as pessoas que assumiram a luta contra a desigualdade ou discriminação, especialmente, racial, de género ou de orientação sexual.

            Também, partilho um pouco da opinião dos críticos. Não acredito com tanto profissional especializado a trabalhar para a área da educação nos Estados Unidos existissem nas bibliotecas escolares livros nocivos ou de cariz  considerado pornográfico no século XXI. Esta atitude das alas mais conservadoras nos Estados Unidos é um grande retrocesso mental e, por outro lado, é óbvio que este retrocesso a nível de abertura de conteúdos só prejudica os mais desfavorecidos e vulneráveis que procuram  nas bibliotecas o seu “Ex libris” de acesso por todos de forma igual ao conhecimento.

    As famílias com maior desafogo económico depressa contrariam esta questão adquirindo os livros por outras vias. Os mais prejudicados são aqueles que só na escola têm acesso ao conhecimento para poderem depois produzirem uma opinião construtiva e informada. Esta iniciativa acaba por prejudicar todos aqueles jovens que estão no limiar, como se tivessem que ser selecionados para preconizar e veicular as ideias oficiais, mesmo que arcaicas que certos grupos mais conservadores querem ver expandidas apesar de tão retrógradas e desactuais.

    No livro “O nome da Rosa” de Umberto Eco existe uma trama a volta da negação do acesso ao conhecimento numa abadia na Idade Média. Todos os acidentes macabros que se vão desenrolando estão todos relacionados com a descoberta/ocultação de livros com saber considerado profano.

    Também o cronista do Expresso Francisco Louçã tem uma crónica publicada no dia 28/02/2023 com o título “E de repente deve-se corrigir a literatura?” se refere a esse assunto o autor da crónica começa por contar-nos que “ A censura existiu sempre, de variadas formas. Durante séculos, nenhum livro podia ser impresso sem a autorização da Inquisição, há no Vaticano uma extraordinária biblioteca que preserva muitas cópias de textos proibidos. Outros senhores usaram a mesma autoridade. Os nazis queimaram livros e não foram os únicos, a genealogia do ato é ancestral.”

    Esta atitude que durante o nazismo se queimaram milhares de livros proibidos está ideia por exemplo expressa no filme “A rapariga que roubava livros” baseado numa obra homóloga do escritor Markus Zuzak . Trata-se da história de uma menina alemã que ajudava a mãe adoptiva a entregar cestos de roupa passada e numa das casas que tinha que visitar descobriu, por mero acaso uma biblioteca cheia de livros, algo que ela não tinha acesso na sua humilde vida então gradualmente surripiava um ou outro livro e tornou-se uma ávida leitura e mais tarde influenciou a sua profissão de vida quis o destino que se tornasse escritora. Também podemos aperceber-nos como fica chocada com atitude do seu povo a queimar livros e livros sem explicação. Livros que ela tanto ama estão a ser atirados à fogueira.

Em suma podemos refletir que o acesso geral ao conhecimento muitas vezes só está ao alcance de grupos restritos que controlam o que tem realmente de saber as populações. Na sua perspetiva o acesso às fontes de conhecimento só deve estar ao alcance de alguns. E só existem alguns casos excecionais que fogem à regra.

Mas afinal o que é propriamente a censura do que se trata?

Censura[3] (tem origem latina) é a desaprovação e remoção da circulação pública de informação visando a proteção de interesses do estado, organização de indivíduos. Ela consiste em toda e qualquer tentativa de suprir de circulação informação, opinião ou expressão artística.

A propósito de censura está a manutenção do “status quo” evitando a alteração de pensamento num determinado grupo social e consequente disposição de mudanças de paradigmas políticos ou de comportamento. Desta forma a censura é muito importante entre alguns centros de influência com certos grupos de interesses  (lobbies, instituições religiosas e governo como forma de fazer manutenção do poder ou de o constituir…

As formas modernas de censura incluem limitação ao acesso a certos meios de comunicação social ao modo de atribuição das concessões da rádio e televisão. Também existem as agências reguladoras dos critérios editoriais discricionários, segundo os quais um jornal por exemplo pode não noticiar um determinado facto ou conteúdo.

Sobre esta problemática da censura também podemos compreender que ela não se reporta só aos Estados Unidos. Em Portugal também sempre houve censura.

Existe um artigo com uma resenha muito completa sobre este assunto, https://in-libris.com/blogs/tertulia/13078189-os-livros-e-a-censura-em-portugal de Paulo Ferreira, apenas irei apenas referir por alto algumas das referências mais importantes, durante  o período da inquisição D. João III no ano de 1539 lembrou-se de empossar um seu irmão mais novo o cardeal D. Henrique nas funções de inquisidor-geral do Tribunal de Santo Ofício. Tudo era controlado, inclusivamente, os livros, os autores, os editores e tudo mais que a inquisição resolvia banir.

As obras como de Damião Gois, os Autos de Gil Vicente, a segunda edição dos Lusíadas de Luís de Camões, A peregrinação de Fernão Mendes Pinto entre outras conheceram o censor do inquisidor.

O autor do blog também se refere a um texto do jornalista José Amaro Dionísio, “Escritores na prisão” publicada na Revista Grande Reportagem em Julho de 1993 onde conta que de Camões a Camilo, do padre António Vieira a Francisco Manuel da Silva, da Marquesa de Alorna a Gomes Leal, de Bocage a Cesariny e um ininterrupto rol de poetas, novelistas ou ensaístas pagaram a fatura da diferença.

  • Luís de Camões esteve preso duas ou três vezes por causa de uma simples rixa no Rossio. Sobre os Lusíadas que salvara de um naufrágio que teve  de submeter o texto aos censores do Santo Ofício verso a verso.
  • O padre António Vieira também não escapou à inquisição esteve preso de 1665 – 1667 por causa da publicação do livro Esperança de Portugal, Quinto Império do Mundo, Primeira e segundas vidas de El rei D. João IV em que defendia  os cristãos novos e sibilava contra os dominicanos do Santo Ofício.
  • Francisco Xavier, o Santo Ofício condenou-o no dia 18 de Agosto de 1761, mas, como estava exilado na Holanda salvou-se. Os s eus livros foram retirados do mercado.
  • António José da Silva, autor de o Judeu, dramaturgo foi preso pela primeira vez em 1726, juntamente com a sua mãe, troturado, libertado meses depois, depois volta a ser encarcerado em 1737 com mãe e também com a mulher e a filha. Dois anos mais tarde é degolado e queimado num auto de fé no Terreiro do Paço em Lisboa. A restante família foi igualmente queimada viva.

Muitos nomes podíamos ainda citar referidos na grande reportagem…

O autor do blog faz referência ao pensamento de Alexandre Herculano sobre a censura: “Onde quer que apareça a censura, onde quer que se aninhe esta irmã gémea da inquisição há uma quebra nos foros da independência do homem, há uma insolência do passado contra a desigualdade social da geração presente.”

Outro grande momento de actos de censura massiva em Portugal deu-se durante o Estado Novo. A censura da PIDE é sobejamente conhecida e ainda a poucos meses do 25 de Abril o então ministro do Interior Gonçalves Rapazote ordenava à Polícia política para dedicar um cuidado particular ao cumprimento das seguintes recomendações:

  • Relacionar as tipografias que se dedicaram à impressão de livros suspeitos – pornográficos ou subversivos.
  • Organizar um plano de visitas regular às livrarias de todo o país para o sequestro dos livros, revistas e cartazes suspeitos e aprender os já proibidos.

A Europa-América teve 73 mil livros apreendidos e 23 títulos proibidos.

 

Podemos concluir que a notícia sobre a censura de livros nas escolas nos Estados Unidos parece algo inerrarável pertencente do passado.

Mas todos já sentimos que continua a existir por todo o mundo e em todos os quadrantes uma espécie de censura sibilina.

Ao vermos os telejornais reparamos que uma notícia ou outro até importante não teve direito a nem uma linha no alinhamento do telejornal.

Mesmo no espaço mais liberal  a “internet” sentimos quando pesquisamos um tema o que é mais óbvio, por vezes, já nem sequer aparece.

Assim é fácil concluir que a censura sibilina nas sociedades modernas continua a existir e exercida por grupos tão poderosos quanto discretos. Mas é óbvio que o famoso “lápis azul” da censura do estado novo continua a andar por aí a fazer das suas sibilinamente…

 

Ana Margarida Alves

 

 

 

Bibliografia de Apoio:

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 



[1] O BLM alega inspiração no movimento dos direitos civis, no movimento Black Power, no movimento feminista negro dos anos 80, no pan-africanismo, no movimento anti-apartheid, no hip hopnos movimentos sociais LGBT e no Occupy Wall Street.

 (Wikipédia – black lives Matter)

 

Make the América Great Again – slogan de campanha eleitoral presidente  Donald Trump que significa tornar a América, novamente, grande.

[2]

[3] https://pt.wikipedia.org/wiki/Censura