Centenário de Eugénio de Andrade: As suas palavras serão para sempre como cristal...

21-01-2023 15:51

 

“Eu nem sequer gosto de escrever. Acontece-me às vezes estar tão desesperado que me refugio no papel como quem se esconde para chorar. E o mais estranho é arrancar da minha angústia palavras de profunda reconciliação com a vida.”

Eugénio de Andrade

 

            Ao longo do ano de 2023 ir-se-ao multiplicar iniciativas sobre a vida e obra de um grande vulto da cultura portuguesa, Eugénio de Andrade, de forma a assinalar o seu centenário. O reconhecido poeta nasceu a 19 de Janeiro de 1923 e tendo partido fisicamente em 2005.

            Este escritor e poeta lírico é natural de póvoa da Atalaia, uma freguesia  do concelho do Fundão, por isso a autarquia promete uma programação recheada de atividades, nomeadamente “Dicionário de 100 imagens para 100 palavras”, a exposição Raíz das Palavras e o regresso do “Festival Literário da Gardunha” centrado  na vida e obra do escritor. Está ainda previsto a construção de uma Sala de Leitura projetada por Siza Vieira na Póvoa da Atalaia.

            No Porto, local onde viveu quase toda a sua vida também não foi esquecido, foi inaugurada a exposição “Eugénio de Andrade: A arte dos versos” na Biblioteca Almeida Garrett, partindo-se do espólio que foi entregue ao município do Porto, em 2020, com entrada gratuita até 29 de Abril. Reuniram-se assim para a exposição documentos inéditos, manuscritos, postais, cartazes e objetos que nos revelam estórias e viagens e encontros com os seus pares.[1]

            Também  a Cooperativa Árvore assinalou a data com a inauguração de uma exposição coletiva de pintura e desenho evocativa do centenário do nascimento de Eugénio de Andrade intitulada “Poesia 100 Eugénio” que é sobretudo um testemunho de amizade. Uma relação de longa data de Eugénio com a cooperativa “Árvore”, instituição cultural do Porto que celebra 60 anos em 2023. O seu aparecimento surge quando o poeta Eugénio morava na Rua Duque de Palmela, no Bonfim, próximo da Faculdade de Belas-Artes e se sensibilizou com os jovens artistas, nomeadamente,  podemos referir Ângelo de Sousa, Jorge Pinheiro e José Rodrigues os fundadores da cooperativa. Eugénio foi para os jovens artistas uma espécie de mentor cultural e artístico. A sua fundação surgiu no tempo da ditadura, numa época em que havia pouco espaço de liberdade.

            Em Lisboa, podemos destacar a iniciativa da Fundação Calouste Gulbenkian e da Biblioteca Nacional de Portugal que irão organizar  em Outubro um Congresso Internacional sobre Eugénio de Andrade.

 

Eugénio de Andrade, o poeta apresenta-se…

“Sou filho de camponeses, passei a minha infância numa daquelas aldeias da Beira Baixa que prolongam o Alentejo e,  desde pequeno, de abundante só conheci o sol e água. Nesse tempo, que só não foi de pobreza por estar cheio de amor vigilante e sem fadiga de minha mãe, aprendi que poucas coisas há absolutamente necessárias. São essas coisas que os meus versos amam e exaltam. A terra e a água, a luz e o vento consubstanciam-se em corpo a todo o amor de que a minha poesia é capaz[2].”

            Por estas palavras de Eugénio podemos fazer um retrato de toda a sua poesia. O poeta escrevia sobre as flores, o vento, a água, os pássaros, as árvores, a lua, a infância, o corpo da juventude[3].

            Talvez, por isso, tenha pela sua simplicidade dos seus temas tocado não só nos seus pares das lides literárias e na crítica como refere o Jornal “Público” num artigo de fundo publicado no dia 19/01/2023, no dia em completaria um século de existência física – a sua obra já tornou de certo modo Imortal – mas, também se torna muito amado nas massas populacionais. Fenómeno que explica que na viragem do milénio a sua obra poética as “Flores e os Frutos” uma obra de 1948 já andasse na vigésima edição.

               A sua poesia centra-se no mundo natural, alheio às cidades e, simultaneamente, alheio às convulsões sociais e políticas.

            O artigo do jornalista Pedro Dias de Almeida elucida-nos que  Eugénio de Andrade tinha uma certa aura de eremita, de anti-social, de olhar o horizonte. A sua poesia é atravessada por um traço de melancólico e  saudosista. A infância e a adolescência de Eugénio de Andrade foram fundamentais para iluminar toda a sua obra poética até ao fim. Tornou-se num “élan[4]” mítico e irrecuperável.

            Segundo conseguimos subentender nas palavras de Eugénio, a escrita foi quase uma imposição “Desde cedo me encontrei desinteressado das coisas que interessam à maioria. Na adolescência tive duas fascinações: a santidade e a poesia. A santidade adeus aos catorze anos, isso estava arrumado. Ficou a poesia.”, expressou numas das raras entrevistas que deu António de Sousa do “Diário de Notícias” em 1983.

 

Algumas notas Biográficas…

            Eugénio de Andrade, pseudónimo de José Fontinhas nasceu na freguesia de Póvoa da Atalaia no Fundão em 19 de Janeiro de 1923. Mudou-se para Lisboa aos dez anos devido à separação dos pais. A sua mãe foi sempre uma presença forte na sua vida a quem este considera também “Pai”, uma vez que, na verdade, o seu verdadeiro pai  foi sempre uma figura ausente na sua vida a quem este meio a brincar lhe costuma de apelidar de “senhorito”. A mãe foi sempre a fonte de toda a sua compreensão para uma personalidade algo irregular e ambígua.

            Foi na Escola Liceu Passos Manuel e Escola Técnica Machado de Castro que fez os seus estudos[5].

            Aos treze anos compõe os seus primeiros poemas enviando-os dois anos mais tarde quando fez quinze anos a António Botto que o incentivou a desenvolver a sua veia literária.

            Em 1943 mudou-se para Coimbra onde regressa após ter cumprido o serviço militar. Tornou-se Funcionário  Público em 1947 exercendo durante 35 anos a função de “Inspetor Administrativo”, do Ministério da Saúde.

            Uma transferência de serviço levá-lo-ia até ao Porto em 1950. Ficou instalado numa casa onde permaneceria mais de quarenta anos. Mudou-se entretanto para o edifício onde funcionou a  extinta Fundação Eugénio de Andrade.

            Durante os anos que se seguem até à sua morte, o poeta fez várias viagens, foi convidado para participar em eventos e travou amizades com muitas personalidades da cultura portuguesa e estrangeira:

  • Joel Serrão,
  • Miguel Torga,
  • Afonso Duarte,
  • Carlos de Oliveira,
  • Eduardo Lourenço,
  • Sophia MelIo Breyner,
  • Agustina Bessa Luís
  • Teixeira Pascoaes,
  • Vitorino Nemésio,
  • Jorge Sena,
  • Mário Cesariny,
  • Entre muitos outros…

Apesar do seu enorme prestígio nacional e Internacional, Eugénio de Andrade sempre viveu distanciado da vida social, literária e mundana.

      Recebeu vários prémios e menções honrosas:

  • Prémio Serva da Literatura (1983)
  • Prémio da Crítica da Associação Portuguesa de Críticos Literários (1985)
  • Prémio D. Dinis (1987)
  • Grande Prémio da Poesia APE/CTT (1988)
  • Grande Prémio da Vida Literária APE/CGD (1988)
  • Prémio Camões, 2001
  • Prémio PEN – Clube Português de Poesia (2002)
  • Medalha de Mérito Cultural (2004)

A 8 de Julho de 1982 foi feita uma homenagem e entregue a Grande-Oficial da Antiga, Nobilíssima e Esclarecida Ordem Militar de Santiago e Espada do Mérito Científico, Literário e Artístico e a 4 de Fevereiro de 1989 foi agraciado com a Grão-Cruz Ordem de Mérito.

 

As suas obras:

            Em 1942, já sob o pseudónimo de Eugénio de Andrade publicou Adolescente. A sua consagração, no entanto, dá-se  alguns anos mais tardes, 1948 com a publicação das “Mãos e os Frutos” que mereceu os aplausos das críticas como Jorge de Sena ou Vitorino Nemésio.

            Entre dezenas obras encontram-se as obras de poesia:

  • Os Amantes sem Dinheiro, (1950)
  • As Palavras Interditas (1951)
  • Escrita da Terra (1974)
  • Matéria Solar (1980)
  • Rente ao Dizer (1992)
  • Ofício de Paciência (1994)
  • O sal da Língua (1995)
  • Os lugares do lume (1998)

 

Em prosa publicou “Os afluentes do silêncio” (1998), “O Rosto Precário” (1979), “A Sombra da Memória” (1993)  e a “Égua Branca” (1976).

Eugénio de Andrade foi um poeta por excelência e a sua despedida da escrita foi como não podia deixar uma obra poética, “Os sulcos da sede” em 2001, quatro anos antes da sua partida do mundo dos vivos. É uma obra que aborda o tema do “Homem velho”. Pedro Mexia que fez o prefácio da edição da “Assírio & Alvim” refere que Eugénio reflete sensações contraditórias na sua última obra. “O “eu” envelhecido, pode muito menos do que dantes, mas os poemas não envelhecem não perdem faculdades. Eugénio recupera aquela sensação que todos temos, a partir de certa idade, a sensação que somos mais novos que aquilo que somos”.

 

 

 

 

 

Alguns poemas que imortalizaram Eugénio de Andrade…

 

Os amantes sem dinheiro

Tinham o rosto aberto a quem passava.
Tinham lendas e mitos
e frio no coração.
Tinham jardins onde a lua passeava
de mãos dadas com a água
e um anjo de pedra por irmão.

Tinham como toda a gente
o milagre de cada dia
escorrendo pelos telhados;
e olhos de oiro
onde ardiam
os sonhos mais tresmalhados.

Tinham fome e sede como os bichos,
e silêncio
à roda dos seus passos.
Mas a cada gesto que faziam
um pássaro nascia dos seus dedos
e deslumbrado penetrava nos espaços.

 

 

Procuro-te

Procuro a ternura súbita,
os olhos ou o sol por nascer
do tamanho do mundo,
o sangue que nenhuma espada viu,
o ar onde a respiração é doce,
um pássaro no bosque
com a forma de um grito de alegria.

Oh, a carícia da terra,
a juventude suspensa,
a fugidia voz da água entre o azul
do prado e de um corpo estendido.

Procuro-te: fruto ou nuvem ou música.
Chamo por ti, e o teu nome ilumina
as coisas mais simples:
o pão e a água,
a cama e a mesa,
os pequenos e dóceis animais,
onde também quero que chegue
o meu canto e a manhã de maio.

Um pássaro e um navio são a mesma coisa
quando te procuro de rosto cravado na luz.
Eu sei que há diferenças,
mas não quando se ama,
não quando apertamos contra o peito
uma flor ávida de orvalho.

Ter só dedos e dentes é muito triste:
dedos para amortalhar crianças,
dentes para roer a solidão,
enquanto o verão pinta de azul o céu
e o mar é devassado pelas estrelas.

Porém eu procuro-te.
Antes que a morte se aproxime, procuro-te.
Nas ruas, nos barcos, na cama,
com amor, com ódio, ao sol, à chuva,
de noite, de dia, triste, alegre — procuro-te.

Eugénio de Andrade, in "As Palavras Interditas"

 

Adeus

Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mãos à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinas
em esperas inúteis.

Meto as mãos nas algibeiras e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro;
era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.
Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes.
E eu acreditava.
Acreditava,

porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.

Mas isso era no tempo dos segredos,
era no tempo em que o teu corpo era um aquário,
era no tempo em que os meus olhos
eram realmente peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.

Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor,
já não se passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
de que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.

Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.

Adeus.

 

 

 

Poema à Mãe

No mais fundo de ti,

Eu sei que te traí, mãe!

Tudo porque já não sou

O retrato adormecido

No fundo dos teus olhos!

 

Tudo porque tu ignoras

Que há leitos onde o frio não se demora

E noites rumorosas de águas matinais!

Por isso, às vezes, as palavras que te digo,

São duras, mãe,

E o nosso amor é infeliz.

 

Tudo porque perdi as rosas brancas

Que apertava junto ao coração

No retrato da moldura!

 

Se soubesses como ainda amo as rosa,

Talvez não enchesses as horas de pesadelos…

 

Mas tu esqueceste muita coisa!

Esqueceste que as minhas pernas cresceram,

Que todo o meu corpo cresceu,

E até o meu coração

Ficou enorme, mãe!

 

Olha – queres ouvir-me? -,

Às vezes ainda sou o menino

Que adormeceu nos teus olhos;

 

Ainda aperto contra o coração

Rosas tão brancas

Como as que tens na moldura;

 

Ainda oiço a tua voz:

       Era uma vez uma princesa

       No meio do laranjal…

 

Mas – tu sabes! – a noite é enorme

E todo o teu corpo cresceu…

Eu saí da moldura,
dei às aves os meus olhos a beber.

Não me esqueci de nada, mãe.
Guardo a tua voz dentro de mim.
E deixo-te as rosas...

Boa noite. Eu vou com as aves!

 

 

 

As Palavras

 

São como um cristal,

as palavras.

Algumas, um punhal,

um incêndio.

Outras,

Orvalho apenas.

 

Secretas vêm, cheias de memória.

Inseguras navegam:

Barcos ou beijos,

as águas estremecem.

 

Desamparadas, inocentes,

Leves.

Tecidas são de luz

E são a noite.

E mesmo pálidas

Verdes paraísos lembram

 

Quem as escuta? Quem

As recolhe, assim,

Cruéis, desfeitas,

Nas suas conchas puras?

 

 

 

Urgentemente

 

É urgente o amor.

É urgente um barco no mar.

 

É urgente destruir certas palavras,

Ódio, solidão, crueldade,

Alguns lamentos,

                                        Muitas espadas

 

É urgente inventar alegria,

Multiplicar os beijos, as searas

É urgente descobrir rosas e rios

e manhãs claras

 

Cai o silêncio nos ombros e a luz

Impura até doer.

É urgente o amor, é urgente

permanecer

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Bibliografia de Apoio:

 

 

 

 

 

 



[1] Fonte: site da revista visão on-line rúbrica “Se7e” de 18/01/2023, artigo assinado pelo jornalista Pedro Dias de Almeida

[2] In Antologia Breve – Eugénio de Andrade, Editorial Inova.

[3] Fonte: site da revista visão on-line rúbrica “Se7e” de 18/01/2023, artigo assinado pelo jornalista Pedro Dias de Almeida

[4] Élan- expressão francesa que significa impulso

[5] Fonte: Biografia de Eugénio de Andrade publicada na Wikipédia – enciclopédia livre, com a entrada “Eugénio de Andrade”