Em “saramaguês” nos entendemos…José Saramago o nobel da literatura português

24-02-2023 09:12

 

“Se puderes olhar vê. Se puderes ver repara”

 

               Falar de Saramago é sobretudo um mergulhar na profundidade e, simultaneamente, no caráter inesperado e insólito das suas obras. No seu extenso trabalho literário, destacaria a título de exemplo “Ensaio sobre a Cegueira”, de 1995 que  se inicia com a frase em epígrafe “Se puderes olhar vê. Se puderes ver repara.”. Trata-se  de uma alegoria à cegueira das sociedades modernas. Uma cidade, a um ritmo alucinante vai sendo contagiada por uma cegueira total. Esta inesperada doença é de tal forma contagiosa que as autoridades isolam todos aqueles que cegaram, pondo-os em “quarentena”. E num espaço exíguo e de condições miseráveis os diversos quadrantes da sociedade juntam-se todos num único espaço onde é preciso lutar por todas as necessidades mais básicas inclusive pela própria comida. E assim no limite da sobrevivência, todos se comportam de uma forma selvagem e obsessiva, esquecendo-se das suas origens, da educação, dos seus próprios pergaminhos pessoais. Todos se comportam de um modo inconsciente, sem regras nem limites. 

Quase no final, um grupo que consegue escapar da quarentena apercebe-se da total insanidade humana perante a falta das coisas mais básicas, nomeadamente a comida. A cidade estava totalmente caótica e destruída. O ser humano no limite revela o pior de si mesmo.

               “Saramago mostra através desta obra intensiva e sofrida, a reação do ser humano à necessidades, à incapacidade, à impotência, ao desprezo sobre a moral, os costumes, ética…”[1]

 

Alguns excertos da obra “Ensaio sobre a Cegueira”…

 

“Por que foi que cegámos, Não sei, talvez um dia se chegue a conhecer a razão, Queres que te diga o que penso, Diz, Penso que não cegámos, penso que estamos cegos, Cegos que veem, Cegos que, vendo, não veem”

 

O medo cega, disse a rapariga dos óculos escuros, São palavras certas, já éramos cegos no momento em que cegámos, o medo nos cegou, o medo nos fará continuar cegos, Quem está a falar, perguntou o médico, Um cego, respondeu a voz, só um cego, é o que temos aqui.”

 

“Lutar foi sempre, mais ou menos, uma forma de cegueira, Isto é diferente, Farás o que melhor te parecer, mas não te esqueças daquilo que nós somos aqui, cegos, simplesmente cegos, cegos sem retóricas nem comiserações, o mundo caridoso e pitoresco dos ceguinhos acabou, agora é o reino duro, cruel e implacável dos cegos, Se tu pudesses ver o que eu sou obrigada a ver, quererias estar cego, Acredito, mas não preciso, cego já estou, Perdoa-me, meu querido, se tu soubesses, Sei, sei, levei a minha vida a olhar para dentro dos olhos das pessoas, é o único lugar do corpo onde talvez ainda exista uma alma, e se eles se perderam”[2] .

 

            Outra obra que merece grande destaque e já se tornou um clássico de José Saramago é “Memorial no Convento”

            Um artigo da “RTP Ensina[3] sobre a obra aviva-nos a memória sobre uma obra que todos, provavelmente, já lemos, na altura em que nos encontrávamos nos bancos da escola, era obra obrigatória no currículo de português.

            O rei D. João V ergue um convento em Mafra, o padre Bartolomeu Gusmão tem o sonho de fazer o milagre de voar, talvez inspirado no ensaios do mestre Leonardo da Vinci, constroí uma passarola voadora. Blimunda, sete luas e Baltazar, sete sóis, apaixonaram-se durante o período da Inquisição, da caça às bruxas e os autos-de-fé, onde o povo vivia empobrecido e faminto.

            O “Memorial do Convento” foi publicado em 1982. Nele José Saramago cruza a história, a ficção e o fantástico. D. João V promete  a Deus e à Igreja a construção de um convento caso venha a ter um herdeiro com a rainha D. Josefa. O milagre acontece e o convento é construído.

            Do povo, como já identificamos supra vêm dois personagens centrais do “Memorial no Convento”. Baltazar um ex-militar que perdeu a mão na guerra e Blimunda que vê o interior das pessoas quando está de jejum. O par romântico conhece-se num Julgamento da Santa Igreja onde normalmente os hereges eram condenados ao degredo e à fogueira.

            Blimunda e Baltazar viviam um amor à margem da lei visto não serem casados. Porém, apesar da sua situação ilegítima são acarinhados pelo padre brasileiro Bartolomeu Gusmão, com uma educação Jesuíta, liberta de convenções.

            O final é trágico, como sempre é trágico o destino do povo anónimo.

            Porém não se contará o fim…seria dececionar um possível novo ávido leitor…

 

 

 

Algumas notas autobiográficas de José Saramago…

 

            Na auto-biografia encontrada  no site da “Fundação José Saramago” encontramos algumas notas quer o autor deixou – sobre si próprio – para a posteridade:

 

    “Nasci numa família de camponeses sem terra, em Azinhaga, uma pequena povoação situada na província do Ribatejo, na margem direita do rio Almonda, a uns cem quilómetros a nordeste de Lisboa. Meus pais chamavam-se José de Sousa e Maria da Piedade. José de Sousa teria sido também o meu nome se o funcionário do Registo Civil, por sua própria iniciativa, não lhe tivesse acrescentado a alcunha por que a família de meu pai era conhecida na aldeia: Saramago. (Cabe esclarecer que saramago é uma planta herbácea espontânea, cujas folhas, naqueles tempos, em épocas de carência, serviam como alimento na cozinha dos pobres)(…) Não foi este, porém, o único problema de identidade com que fui fadado no berço. Embora tivesse vindo ao mundo no dia 16 de Novembro de 1922, os meus documentos oficiais referem que nasci dois dias depois, a 18: foi graças a esta pequena fraude que a família escapou ao pagamento da multa por falta de declaração do nascimento no prazo legal.

Talvez por ter participado na Grande Guerra, em França, como soldado de artilharia, e conhecido outros ambientes, diferentes do viver da aldeia, meu pai decidiu, em 1924, deixar o trabalho do campo e trasladar-se com a família para Lisboa, onde começou a exercer a profissão de polícia de segurança pública, para a qual não se exigiam mais “habilitações literárias” (expressão comum então…) que ler, escrever e contar. Poucos meses depois de nos termos instalado na capital, morreria meu irmão Francisco, que era dois anos mais velho do que eu. Embora as condições em que vivíamos tivessem melhorado um pouco com a mudança, nunca viríamos a conhecer verdadeiro desafogo económico. (…)Já eu tinha 13 ou 14 anos quando passámos, enfim, a viver numa casa (pequeníssima) só para nós(…) Durante todo este tempo, e até à maioridade, foram muitos, e frequentemente prolongados, os períodos em que vivi na aldeia com os meus avós maternos, Jerónimo Melrinho e Josefa Caixinha.

Fui bom aluno na escola primária: na segunda classe já escrevia sem erros de ortografia, e a terceira e quarta classes foram feitas em um só ano. Transitei depois para o liceu, onde permaneci dois anos, com notas excelentes no primeiro, bastante menos boas no segundo (…) Entretanto, meus pais haviam chegado à conclusão de que, por falta de meios, não poderiam continuar a manter-me no liceu. A única alternativa que se apresentava seria entrar para uma escola de ensino profissional, e assim se fez: durante cinco anos aprendi o ofício de serralheiro mecânico. O mais surpreendente era que o plano de estudos da escola, naquele tempo, embora obviamente orientado para formações profissionais técnicas, incluía, além do Francês, uma disciplina de Literatura. Como não tinha livros em casa (livros meus, comprados por mim, ainda que com dinheiro emprestado por um amigo, só os pude ter aos 19 anos), foram os livros escolares de Português, pelo seu carácter “antológico”, que me abriram as portas para a fruição literária: ainda hoje posso recitar poesias aprendidas naquela época distante. Terminado o curso, trabalhei durante cerca de dois anos como serralheiro mecânico numa oficina de reparação de automóveis.

Também por essas alturas tinha começado a frequentar, nos períodos nocturnos de funcionamento, uma biblioteca pública de Lisboa. E foi aí, sem ajudas nem conselhos, apenas guiado pela curiosidade e pela vontade de aprender, que o meu gosto pela leitura se desenvolveu e apurou.

Quando casei, em 1944, já tinha mudado de actividade, passara a trabalhar num organismo de Segurança Social como empregado administrativo. Minha mulher, Ilda Reis, então dactilógrafa nos Caminhos de Ferro, viria a ser, muitos anos mais tarde, um dos mais importantes gravadores portugueses. Faleceria em 1998. Em 1947, ano do nascimento da minha única filha, Violante, publiquei o primeiro livro, um romance que intitulei A Viúva, mas que por conveniências editoriais viria a sair com o nome de Terra do Pecado. Escrevi ainda outro romance, Clarabóia, que permanece inédito até hoje, e principiei um outro, que não passou das primeiras páginas: chamar-se-ia O Mel e o Fel ou talvez Luís, filho de Tadeu… A questão ficou resolvida quando abandonei o projecto: começava a tornar-se claro para mim que não tinha para dizer algo que valesse a pena. Durante 19 anos, até 1966, quando publicaria Os Poemas Possíveis , estive ausente do mundo literário português, onde devem ter sido pouquíssimas as pessoas que deram pela minha falta.”

In site  Fundação José Saramago, https://www.josesaramago.org/biografia/

 

 

Mais alguns pormenores da vida e obra de José Saramago…

            José Saramago[4] foi o único escritor português a ser agraciado com o  Prémio Nobel da Literatura em 1998.

            O seu percurso literário inicia-se aos 25 anos quando publica o primeiro romance “Terra do Pecado” (1947).

            Casou-se em 1944 com Ilda Reis e com quem permaneceu até 1970. Teve uma curta relação com a escritora Isabel Nóbrega. Em 1988 casar-se-ia com a jornalista e tradutora espanhola Maria Pilar del Rio Sanchez que conheceu em 1986 e ao lado de quem viveu até à morte. Sendo ela a grande impulsionadora da sua notoriedade dedicando-se quase exclusivamente a promover  a obra do marido (atualmente já falecido) através da Fundação José Saramago e outras organizações.

            Porém voltando um pouco atrás no tempo, em 1955 e para aumentar os seus rendimentos José Saramago  começou a fazer tradução de Hegel, Tolstoi e Baudelaire, entre outros.

            A seguir “À Terra do Pecado” tentou publicar o livro “A Claraboia” que foi recusado e só veio a ganhar a luz do dia em 2011.

            A sua carreira literária sofreu um interregno de dezanove anos. Só viria a ser retomada perto de 1970. Apesar de na sombra ter continuado a dar azo à sua veia literária. Nos anos setenta junta-se à editora “Editorial estudo da cor”. Nessa época, troca a prosa pela poesia lançado a obra “Poemas possíveis”. Num espaço de cinco anos publica  “Provavelmente Alegria” e o “O ano de 1993” (1975).

            Em 1975, após o 25 de Abril troca de atividade profissional e vai trabalhar para o “Diário de Notícias” e depois para o “Diário de Lisboa”. Trabalhou dez meses no Diário de Notícias, como diretor-adjunto até ao 25 de Novembro. É demitido. Os militares portugueses intervém na publicação reagindo aos excessos da Revolução dos Cravos.

            Vendo-se sem emprego Saramago resolve dedicar-se apenas à literatura deixando de vez o jornalismo trocando-o pelo ficcionismo.

Trinta anos depois da “Terra do Pecado” publica de novo em prosa “manual de Pintura e Caligrafia”. Mas, ainda não foi nesse momento que o autor define o seu estilo. As marcas características do estilo “saramaguês” só surgem em “Levantados do Chão” (1980). O livro retrata a vida e as suas privações das populações do pobre Alentejo. Depois surge “Memorial no Convento” em 1982.

De 1980 a 1991 faz jus aos rumores que o retratam como um escritor disruptivo, pondo nas suas obras em causa  a versão da História oficial.:

  • O ano da morte de Ricardo Reis
  • Jangada de Pedra, em que questiona o papel ibérico na antiga CEE, através de uma metáfora, a Península Ibérica  descola-se da Europa e encontra-se à deriva entre a velha Europa e a nova América.
  • História do cerco de Lisboa (1989), onde existe  a tentativa de introduzir um “não texto histórico”
  • O Evangelho Segundo Jesus Cristo (1991), onde Saramago reconta a história do livro sagrado segundo a sua óptica. Jesus Cristo não é deus e revolta-se contra o seu destino, onde põe em causa deus, o  Cristianismo, o sofrimento e a morte. Este livro foi tão polémico que levou o secretário-estado Sousa Lara não o deixar participar num concurso a um prémio literário. Essa situação foi a gota de água que afastou José Saramago do Estado e de Portugal.

José Saramago corta relações com o seu país e vai viver para a ilha de Lanzrote, em Espanha, onde permanece até à morte.

Deixa de escrever romances baseados na história do país e foca-se nas temáticas da sociedade contemporânea.

  • Ensaio sobre a Cegueira, 1995
  • Todos os nomes, 1997
  • A caverna, 2001
  • O homem duplicado, 2002
  • Ensaio sobre a Lucidez, 2004
  • Intermitências com a morte, 2005

 

Saramago falece a 18 de Junho de 2010 aos 87 anos vítima de doença prolongada, na sua casa de Lanzarote onde residia com a esposa Maria Pilar del Río.

 

Características da escrita “Saramaguesa”  que só

a José saramago é permitida

 

            José Saramago ficou conhecido por  utilizar um estilo oral e coevo, acreditava que a vivacidade na comunicação era mais importante que a correção ortográfica. Todas as caraterísticas da linguagem oral, utilizadas na oratória, na dialética e na retórica servem sobretudo para imprimir um estilo interventivo e persuasivo:

  • Frases e períodos longos
  • Pontuação pouco convencional
  • Diálogo das personagens inserido nos parágrafos que os antecedem, não existindo travessão na escrita, falas propícias  a confundirem-se com a sensação de fluxo de consciência não se compreendo bem se se trata de um pensamento ou de um diálogo real
  • Muitas das frases ocupam páginas, usando poucas vírgulas.

 

As suas obras:

 

Romances

 

Crónicas:

 

Peças Teatrais

 

 

Contos

 

 

Poesia

Diário das Memórias

Infantil

Viagens

 

Destacam-se alguns Prémios…

            Dos prémios que recebeu ao longo da vida destaca-se o Prémio Camões 1995 e o Prémio Nobel da Literatura em 1998.

            A 24 de Agosto de 1985 foi agraciado com o grau de Comendador da Ordem Militar de Santiago de Espada e a 3 de Dezembro de 1998 foi elevado a Grande Colar da mesma Ordem, honra reservada apenas para chefes de Estado.

A título póstumo de 2021, no âmbito das comemorações do centenário sobre a sua morte foi condecorado com o grande colar da Ordem de Camões, por serviços únicos prestados à cultura e à Língua Portuguesa.

 

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A 29 de Junho de 2007 constitui-se a Fundação José Saramago pela Defesa dos Direitos Humanos e a defesa do meio ambiente.

Em 2012 a Fundação José Saramago abre as portas ao público na Casa dos Bicos em Lisboa, presidida pela sua esposa Pilar del Río.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

           

 

 

 

 

Bibliografia de Apoio:

 

https://pt.wikipedia.org/wiki/Ensaio_sobre_a_Cegueira

https://ensina.rtp.pt/artigo/memorial-do-convento-de-jose-saramago/

https://pt.wikipedia.org/wiki/Jos%C3%A9_Saramago

https://www.josesaramago.org/biografia/