Invisibilidades: Eu vejo-te mas tu não me vês

28-07-2022 09:44

 

 

  • A problemática da invisibilidade social das pessoas vulneráveis nas sociedades contemporâneas
 
 

    Uma multidão indiferente percorre as ruas, as praças e as avenidas e no meio dessa multidão aflita e apressada misturam-se os seres invisíveis. Aqueles por quem todos passam, mas, ninguém vê. São constantemente empurrados contra a parede para as pessoas poderem passar. Poucas pessoas os olham nos olhos. Poucas pessoas sabem sequer o seu nome. Podem até ter um aspeto aprumado, mas, as pessoas vêm neles qualquer coisa que lhes lembra sujidade. Qualquer coisa que lembra os cheiros nauseabundos que vêm dos esgotos entupidos das periferias sociais. Sem que lhes peçam nada já lhe estão a estender uma moedinha. Lavam, assim, a sua consciência de estarem a cumprir as recomendações da caridadezinha social.

    Para nos debruçarmos mais aprofundadamente sobre esta temática podemos fazer referência a um texto “Invisibilidade e reconhecimento: a construção da literacia moral em pedagogia social” de José Luís Gonçalves da Escola Superior de Educação Paula Frasinetti e de seguida lançaremos algumas notas sobre o “Diário de Um sem Abrigo” de Jorge Costa.

    O autor, José Luís Gonçalves, no seu artigo, acima já identificado, frisa que a invisibilidade relaciona-se com a estrutura do processo de reconhecimento do ponto de vista de uma teoria de ação e de uma epistemologia. O autor faz uma abordagem centrada na epistemologia moral que realça as formas de olhar com desprezo, indiferença ou eivados de estereótipos através de “outrem” sem levar em consideração a pessoa. Pretendemos retirar dos ferimentos morais infligidos aos “invisíveis” os princípios morais das implicações normativas do concelho de reconhecimento preconizado por Axel Honneth.

  1. Breve fenomenologia da “invisibilidade social”

A invisibilidade social a que aludimos, empiricamente, constitui um processo multidimensional (psicológico, social, económico, político e cultural em curso nas sociedades contemporâneas, erigindo barreiras psicossociais que interferem, negativamente, nas redes intersubjetivas quotidianas, no espaço público e frequentemente são geradoras de conflito. A perspetiva em que o autor aborda o fenómeno desta invisibilidade social visa compreender o impacto antropológico desta invisibilidade para a pedagogia social.

  1. Três exemplos de invisibilidade social:

    O autor lança as pistas sobre a invisibilidade social através de três exemplos veiculados em produções cinematográficas e literárias, duas recentes e outra, um clássico

 

  • O filme das “crianças invisíveis”

 

Não obedecendo a parâmetros estritamente comerciais e com o Apoio da Unicef e do WFP (Programa Mundial de Alimentos), este projeto cinematográfico foi apresentado em Veneza e no Festival do Rio de Janeiro em 2005, o objetivo das sete curtas metragens em exibição tinham como intuito tornar visível a realidade das crianças invisíveis em diferentes partes do globo.

A história de Tanza, a menina africana que pôs uma bomba na escola onde no dia seguinte as crianças da sua idade, mas, de uma etnia inimiga iam ter aulas.

 

Em Nova Iorque, acompanhamos a história de Blanca em que os pais toxicodependentes e portadores de HIV descobrem que ela mesma é portadora dessa mesma doença. Entre outras histórias que não vamos mencionar nesta resenha

 

Em comum, estas histórias, têm a busca da felicidade. Os seres que se encontram na base da estratificação social o que lhe resta mais, senão sonhar com o prazer de ser feliz.

 

 

  • Os itinerários autobiográficos “Cabeça de Porco”

 

Retratam também a invisibilidade das crianças. Através da ingressão no universo quotidiano da violência, dos valores, das rotinas, linguagens, símbolos das crianças brasileiras de 9 estados brasileiros. Um antropólogo, um rapper, e um empresário testemunham e relatam itinerários de um cem número de personagens, todas verdadeiras que numa sub-cultura específica mais que denunciar, pretendem apontar saídas para os becos sociais, políticos, culturais e económicos que estão mergulhados milhões de pessoas no Brasil. Os autores denunciam a indiferença que produz a invisibilidade de muitos jovens pobres, especialmente, negros.

 

 

  • O romance afro-americano “The invisible man”

A invisibilidade que Ralph Ellison relata no seu romance “Invisible Man” narra a história da viagem de um homem negro pelos estados sulistas da América, no início do século XX.

O autor convida os leitores a entrarem no seu mundo através do seu olhar e reflete sobre a negritude e  a raça, a coexistência etníca tensa em sociedade e os ideias democráticos.

A medida  que a narrativa evolui o autor tenta ser reconhecido no espaço-tempo por si ocupados. Assim existe uma antítese entre a efetiva invisibilidade real que padece no contexto social e a visibilidade fictícia que lhe confere a narrativa literária. O autor dá o alerta para o facto de não ser um fantasma ser um homem invisível, simplesmente, pelo facto das as pessoas o recusarem a ver.

  1. Duas caraterísticas epistemológicas comuns ao fenómeno da “Invisibilidade Social”

 

  • Aquele que perceciona com preconceitos, estigma e indiferença

Para além da indiferença, à luz do preconceito e do estigma social o olhar do sujeito que, projetado sobre os outros, os torna invisíveis. É um olhar performativo esse, na medida que, por um lado tenta anular a pessoa na sua singularidade, por outro lado, anula na imagem que perceciona só consegue ver a sua própria intolerância. Esse olhar esvazia as pessoas da sua densidade existencial e ontológica na medida que o “estigma dissolve a identidade do outro e o substitui pelo retrato estereotipado e classificação que lhe impomos”.

Este olhar nada inocente está carregada de defesa, pois o movimento de categorização do sujeito que produz (a consumidora toxicodependente, etc.) serve para tornar previsível o seu comportamento e assim estimular e justificar a adoção de atitudes preventivas e defensivas tal como narra a obra “Cabeça de Porco”, em relação a determinados adolescentes que deambulam pelas cidades brasileiras. Para quem a despreza essa atitude configura, implicitamente, uma verdadeira acusação pelo facto da pessoa olhada simplesmente existir.

O olhar preconceituoso que provoca “invisibilidade” do outro e, assim, anula e esmaga exprime bem as limitações dos “olhos interiores” de quem projeta o preconceito. Nesse sentido o preconceito diz mais acerca de quem o enuncia do quem o sofre.

  • A transparência que vulnerabiliza quem é visto

O oposto da invisibilidade é a visibilidade. Na ficção as histórias  de terror, a vítima do medo é vista, mas, não se vê inteiramente exposta e desnudada sente-se desprotegida, permanecendo cega para a fonte do mal.

Se a “invisibilidade” pulveriza e anula a singularidade do sujeito, o faz desaparecer e o desvaloriza, este enredo de terror hipervaloriza quem é visto, mas, apenas que produz um prazer luxuriante de uso e abuso do outro que é visto para efeitos da sua produção malévola. Neste olhar coisificante, “a vítima reduz-se a objeto é nesta condição que a sua visibilidade é focalizada e enaltecida. O que se vê não é a pessoa, na sua individualidade, mas alvo de uma violência iminente que será desencadeada pelo agente de terror.”

  1. Duas explicações epistemológicas para a “invisibilidade”

 

  • O papel decisivo da noção de representação

            A noção de representação configura um filtro cognitivo da origem psicossocial e cultural, presente na mente do sujeito que olha, produzindo “invisibilidade social” de quem é olhado, porque se situa no cerne da pessoa e da modalidade de conhecimento. Enquanto processo “a representação integra-se numa dinâmica articulada, por um lado, sobre a estrutura psicológica do indivíduo, por outro, sobre a estrutura social. Por conseguinte, uma representação, nunca é estática, ela evolui com o sujeito, o tempo e a sociedade, a história (…) é objeto de modificações periódicas. A representação constitui-se, então como resultados de interação dos sujeitos com o seu ambiente sócio-cultural e destes entre si, de tal forma  que fundamenta uma relação primordial do eu com o outro.

            Assim, nas três obras arroladas para evidenciar a “invisibilidade social” poderá estabelecer uma relação entre o agir/pensar intersubjetivo do sujeito e as suas expressões sócio-culturais contextualizadas surgindo de facto, entre duas dimensões como sendo um único processo, muitas vezes inconsciente na qual a ordem simbólica determina tanto a personalidade dos atores sociais como o seu agir.

            A evocação da noção de representação é tanto mais importante quanto a invisibilidade. No livro, já referido acima “the invisible man”, já não é a presença física do autor mas a sua não-existência em sentido social (invisibilidade apesar da sua presença física).

 

  • A distinção  necessária entre a singularidade e a identidade

 

Vamos tentar distinguir a noção entre conhecimento e reconhecimento de alguém. Para se explicitar a distinção entre o conhecimento e reconhecimento de alguém, os autores deste estudo evocam o texto “O princípio da identidade” (Der Satz der Identitat, 1957), de Hedegger em que o filósofo afirma demasiado apressadamente que A. A. Como fundamento evidente do pensar. Para o autor Alemão a identidade plasma-se no acontecimento apropriador do quotidiano por via da linguagem. E como a temporalidade não é consubstancial à identidade porque esta está sempre em mutações e reconfigurações permanentes. (pode aparecer, ocultar-se, construir-se ou desintegrar-se) a linguagem tende a cristalizar tal identidade produzindo uma falsa ilusão da imutabilidade identitária (um arrumador é sempre um arrumador), o que constitui uma perigosa categorização social como obnubila a relação epistemológica na relação intersubjetiva. Seja por preconceito, estigma, ou indiferença, negligência, até existe uma determinada linguagem indexada aos socialmente marginalizado que está na raiz da permanência de muitos concidadãos como seres socialmente invisíveis porque estabelece uma relação vinculativa entre o sujeito e a sua respetiva identidade social.

            Para poder desarticular esta vinculação, F. Guatarri opera uma distinção muito útil em que defende a singularidade é (antes do mais) um conceito existencial; já a identidade é um conceito de referenciação de circunstância da realidade a quadros de referência, quadros estes que podem ser imaginários.

            Assim, enquanto a identidade se refere a um tomar conhecimento do outro, nesse sentido empregue por A. Honneth a singularidade congrega elementos personalizados do sujeito e configura uma aproximação as condições de possibilidade de reconhecimento.

            É justamente, a ocultação desta singularidade do outro na perceção do Eu que o tema dos socialmente invisíveis poderá assim afirmar-se. Na relação intersubjetiva existem estruturas (cognitivas, epistemológicas, psicossociais da linguagem) que interagem e influenciam a efetivação de identidade na relação entre os sujeitos das sociedades contemporâneas.

            A discriminação do outro em função dos papéis sociais que assume e constrói no subconsciente a representação subtil de uma sociedade de homens e mulheres invisíveis condenando-os ao estatuto de não-existência no espaço público.

 

2. Literacia Moral

            Analisaremos de seguida os impactos morais desta “invisibilidade social” quer para quem olha  quer para quem é olhado:

  1. A  construção social da “invisibilidade” conduz à indiferença moral

Esta conduta de causar invisibilidade do outro. É contrária, às intencionalidades e convicções morais da maioria dos cidadãos, tem-se, todavia afirmado no espaço público como uma ação nacional aceite pelo senso comum. Mas, enquanto esta verdade do senso comum for aceite como evidente por parte de quem olha, não haverá nenhuma maneira moral, legítima para impedir tal conduta.

Os atos insignificantes (a indiferença que origina “invisibilidade social” por via da noção de representação e pela linguagem estereotipada) são de origem epistemológica mas encerram significados morais. A incapacidade de compreender o alcance de tais atos configura uma verdadeira iletricia moral na relação intersubjetiva “não nos devemos surpreender com a imensa crueldade em grande parte não intencional de homens de boa vontade”.

Quanto mais se reforça, inconscientemente, a distância psíquica e social entre o ato praticado e as consequências mais se acentua o fosso entre a decência moral pessoal e a imoralidade das repercussões sociais deste ato. A invisibilidade das vítimas torna-se ainda mais refinada. Quanto esvaziadas da sua humanidade, as excluímos do nosso universo de obrigações.

      A expressão “universo de obrigações” proposta por Helen Fein designa os limites exteriores do território social, dentro do qual se pode colocar alguma questão moral com algum sentido de responsabilidade do outro. Quando as vítimas são retiradas para fora de esse “universo de obrigação” não só se tornam socialmente invisíveis, mas desumanizam-se porque são existencialmente irrelevantes e ontologicamente vulneráveis.

 

  1. Invisibilidade como ferimento moral

Do ponto de vista da vítima que é olhada – a outra face da moeda -  e segundo Axel Honneth, existe uma relação causal entre o ferimento moral resultante da “invisibilidade da vítima” e a negação do seu reconhecimento como pessoa. Quando alguém é tornado invisível apesar da sua presença física evidente estamos diante de uma humilhação simbólica e de facto: o não respeito pela sua integridade pessoal transforma um ato negligente num ferimento moral.

 

É preciso analisar as seguintes premissas necessárias para compreender melhor a invisibilidade social. Por um lado, só se sente moralmente vulnerável a pessoa que se relaciona reflexivamente consigo própria, a partir dos padrões mínimos de qualidade de vida digna. Por outro lado,  se esta referência à relação prática, se esta referência à relação prática permite explicar o objeto do ferimento moral (a experiência de invisibilidade que gera desprezo, desrespeito e rebaixamento). Mas isto ainda não é suficiente, para preservar essa reação boa consigo própria necessita de reações de aprovação ou assentimento com os outros sujeitos. O abalo psicológico que a vítima sofre é acompanhado de uma sensação de injustiça moral, quando a pessoa atingida perde a esperança na realização de uma das condições da construção da sua identidade ser notada e respeitada).

Esta explicação sintética leva-nos a outra distinção necessária: os ferimentos morais são sentidos tanto  mais pesados para a vítima quanto mais elementar for o tipo de “relação em si”. Que eles usam ao destroem na pessoa. Pelo termo “relação em si” entende-se a consciência ou sentimento que uma pessoa tem si mesmo, no que lhe concerne às faculdades e os direitos que lhe cabem.

Distinguimos três níveis diferenciados de alguém a referir-se a si:

  1. Plano físico da satisfação das necessidades pessoais
  2. Capacidade de discernimento moral
  3. A consciência de possuir faculdades distintivas que lhe conferem valor singular e estima social da pessoa

                       O autor fez uma relação entre os filmes e os livros já mencionados e estes três planos. No primeiro plano (físico), o ferimento moral consiste na perda de confiança em dispor do seu bem estar físico, mas, que é de facto destruído e ferido é o valor que as suas próprias necessidades (não) possuem aos olhos de todos os outros. Como é o caso de Blanca que é seropositiva e passa os dias a cuidar dos pais.

 No segundo plano, são inumeráveis os casos  em que despreza a faculdade de  discernimento moral das pessoas. O autor do estudo cita o filme “Cabeça de Porco” que narra a sua versão biográfica dos adolescentes delinquentes nas cidades brasileiras que levam o leitor a um sentimento contraditório de negação e busca do reconhecimento com o agressor.

            O terceiro plano, tipifica os casos em que humilha ou se falta ao respeito a determinada pessoa pelo facto de não se reconhecer faculdades de valor social no quadro de uma determinada comunidade. É a intenção do autor do romance Ralph Ellison no texto original de “looking through” obrigar o leitor branco sem que o perceba imediatamente a ver o mundo através do seu olhar negro de modo que obrigue os brancos a reconhecer o valor social dos negros.

            Assim, através destes exemplos podemos concluir que os ferimentos morais que atingem os mais vulneráveis constitui um desafio ético, psicológico e antropológico irrenunciável em pedagogia social.

 

Reconhecimento

  1. Da invisibilidade ao reconhecimento

     A possibilidade de infligir ferimentos morais a alguém resulta da natureza intersubjetiva das formas de vida humana.

O autor acrescenta que  a vulnerabilidade das pessoas pode ser classificada de moral na medida em que a vulnerabilidade das pessoas pode ser classificada de “moral” na medida em que  construindo cada uma a sua identidade numa relação prática consigo mesmo essa construção depende da ajuda mútua e da aprovação das pessoas. Assim sendo, a convivência humana deve adaptar uma rede de atitudes que a proteja contra os ferimentos que têm a sua origem na relação a si”. O imperativo moral que emerge desta premissa formulada permite afirmar que, em sentido positivo, a convivência humana formula o dever das atitudes que somos obrigados a adaptar uns em relação aos outros, para reunirmos juntos as condições da nossa ingenuidade pessoal na convivência social.

Assim, podemos ainda acrescentar que a “invisibilidade social” do outro só é superável quando a pessoa que olha entende que entre a tomada de consciência do outro no seu campo visual e a sua iniciativa de aprovação ou de assentimento deve ser motivada por imperativo moral de reconhecimento.

Este ato cognitivo de identificação individual não pode restringir-se à esfera íntima de exprimir-se publicamente através da interação de gestos e mímicas que exprimem relações existenciais e responsabilidades perante o rosto do outro. A ausência destas formas de expressão pública pode ser sinal de invisibilidade e humilhação.

 

  1. Os três modos de reconhecimento: amor, direito e solidariedade

 

    Honneth propõe igual número de formas  de reconhecimento em relação aos tipos de desprezo moralmente ofensivos. Inspirado no modelo Hegeliano da luta de reconhecimento, o autor reflete sobre os mecanismos de enraizamento social da personalidade humana, tentando perceber através do interior dos conflitos sociais em que se dá uma experiência de desrespeito social (de um ataque à identidade  social ou coletiva, capazes de suscitar uma ação que procure restaurar relações de reconhecimento mútuo), as dinâmicas da construção da identidade pessoal em comunidade com implicações de uma teoria social de teor normativo. O autor vê estas lutas pelo reconhecimento de uma força moral que impulsiona a reconfiguração da identidade do indivíduo em três dimensões distintas, mas, complementares e que garantem as condições de integridade pessoal.

  • O Amor – a pessoa é reconhecida na sua singularidade quando as suas necessidades adquirem um valor único e cujo o reconhecimento se consubstancia numa dedicação de caráter incondicional, a confiança em si mesmo para levar a termo projetos de auto-realização.
  • Discernimento moral – esta esfera jurídica-moral, o direito universalmente válido que inclui o direito à cidadania e desenvolve um auto-respeito da pessoa consigo mesma e perante os outros.
  • Reconhecimento que cai na esfera da estima social em que as faculdades podem ser um respeito solidário. A multiplicidade de gestos de afirmação de alguém (sorrir, empatizar, cumprimentar, correspondem a diferentes valores atribuídos ora se trate de amor, direito ou solidariedade.  O que as pessoas devem gerir a sua vida pela autonomia racional imprimindo orientação reflexiva baseada em razões e não pelo senso comum o passível de gerar ferimento moral.

 

  1. Obrigações morais de reconhecimento deste tríptico resulta que só aquelas pessoas que são levadas positivamente em consideração e se sentem reconhecidas. Por isso, é mais que reconhecer alguém, é posicionar-se perante o outro mediante uma forma encurtada de sinalização simbólica. Os gestos expressivos têm um carácter de meta- ação, na mediada em que sinalizam uma forma simbólica de comportamento que o visado legitimamente espera. Se ver e conhecer o outro na sua forma elementar representa um gesto expressivo de afirmação de apoio ou deferência, então conclui-se que o reconhecimento vai mais longe e aponta uma meta-ação: na medida que dirigimos um gesto de reconhecimento do outro, damos-lhe a conhecer, performativamente, nos sentimos obrigados a ter um comportamento de bem-querer em relação a ele.

Podemos ainda afirmar que as expressões como confirmação, recomendar, apoiar ou deferir significam: reconhecimento

 

  1. O papel da psicopedagogia

    O conflito social silencioso da invisibilidade que tece as relações intersubjetivas na “polis” contemporânea pode constituir-se uma fonte de literacia moral e cívica se se abrir e desencadear um movimento de reconhecimento mútuo entre cidadãos. Assim, a pedagogia social há, de  exprimir-se numa paradigmática de duas dimensões, desmascarar pelo diálogo, confrontar os ferimentos morais que sofrem homens e mulheres de rosto invisível. Quando o rosto do outro aparece na sua singularidade e provoca um sentimento de indignação moral em nós já estamos a romper o ciclo da sua invisibilidade.

    Por outro lado, aprendemos a interpretar o que vemos mas não compreendemos o jovem do bairro social usar umas sapatilhas de marca está a manifestar ânsia de integração e inclusão social.

    A pedagogia social tem um a tarefa conflitiva, mas, indispensável pela frente: “na sociedade de todos, a identidade moral de cada um é formada em comunidade de discussão e negociação.

    Movendo-se em muitas orientações paradigmáticas complementares está sempre a ser desafiada a desenvolver competências relacionais  e éticas que permitem agir orientado por princípios e valores em que se baseiam as sociedades democráticas. Assim, o autor sugere  dois desafios decorrentes desta reflexão. Ao propor um tríptico da relação a si do sujeito (confiança em si,, discernimento moral e auto-consciência das faculdades). Axel Honneth denuncia ferimentos  morais da pessoa no espaço público tais como maus-tratos, desacreditação ou tratamento jurídico desfavorável – estigmatizações ou até a estigmatização social.

    O autor, a final questiona-se será que o tríptico moral, psicológico e antropológico motiva a pedagogia social a rasgar horizontes favoráveis, através de uma investigação-ação assente sobre os fundamentos dos direitos humanos e da democracia, passando pela construção da cidadania nas sociedades multiculturais contemporâneas alcançando amplos espaços de formação ao longo da vida.

 

 

Resenha do artigo de José Luís Gonçalves, ESE Paula Franissetti, colaborador UCP

 

Algumas notas sobre um caso concreto de invisibilidade

 

A invisibilidade que leva o ser humano a atingir o “chão” – algumas notas sobre o livro “Diário de um sem abrigo”, 

Jorge Costa

 

 

 

 

 

 

 

 

 

    Nuno Markl o famoso humorista que assina o segundo prefácio do livro o “Diário de um “sem-abrigo” de Jorge Costa começa por enunciar os vários clichés associados aos sem-abrigos “talvez o clássico maltrapilho dos filmes, agarrado a uma garrafa de vinho ou pacote de vinho. Talvez isso acumulado com criminoso. Alguém perigoso. Alguém que nunca fez nada na vida. Alguém sem estudos e sem cultura. Alguém que achamos distante de nós. Tão distante que mesmo que viva na mesma rua que nós pode ser alguém que nunca lhe dirigimos a palavra (…)Porque nos achamo-nos bons de mais para gastar tempo com alguém tão insignificante. Porque temos medo do cheiro, a falta de higiene, alguma doença nos contamine”.

    A história de Jorge Costa é a história de um dos muitos invisíveis da sociedade que devido à sua incompreensível invisibilidade acabam por cair no mais fundo limbo da sociedade.

    Jorge Costa tinha tudo o que o cidadão médio pode ambicionar. Um emprego estável. Uma casa. Amigos. Num abrir e fechar de olhos perdeu tudo. E caiu nas ruas tendo como teto, a casa de todos e de ninguém, a rua. Sendo o seu telhado, mais alto que o lar de todos nós, o céu, tao azul, tão longínquo e distante, tão inatingível.

    Esteve oito meses na rua e foi salvo por um projeto social que lhe devolveu a dignidade e um teto.

    Mas, mesmo assim, Jorge Costa considerando-se para sempre um “sem-abrigo” com teto, como refere na sua última crónica publicada no livro agora em análise cujo título assim o elucida “Quem sou eu? Um sem-abrigo com casa. É a definição que mais se ajusta a quem sinto ser”.

    Marcelo Rebelo de Sousa, o presidente da República Portuguesa, no primeiro prefácio do livro salienta que Jorge Costa “mesmo quando conheceu a experiência de uma casa, estilo quase “Housing First”, manteve sempre a ligação à rua, a vivência da rua, a memória da rua.”

    Os amigos do passado de cidadão, aparentemente, bem-sucedido dissiparam. A sua atenção foca-se agora nos amigos nas mesmas circunstâncias, os seres vulneráveis, muitos deles sem-abrigos, como ele foi durante oito meses. “Apenas sou um homem que muitas vezes olha para a janela da casa, por muito confortável e quente que se sinta. O frio está lá fora.(…)Mas quando ouço chover, o Jorge continua a dormir à chuva(…). Paro na rua quando vejo um “sem-abrigo”. A minha alma chora quando vejo alguém dormir num canto imundo desta cidade e já dei a quem precisa dinheiro e a comida que me fazia falta. Acho que estou louco? Talvez.”[1].

    Mas afinal quem é Jorge Costa?

Jorge Costa, um cidadão anónimo que caiu na rua devido às adversidades da vida durante oito meses.  Mais tarde foi incentivado  a contar esta sua experiência e através de crónicas que publicou  no jornal local “A Mensagem de Lisboa” a sua história venceu as malhas do anonimato e chegou até todos nós. Agora esses testemunhos pessoais deram origem a livro “Diário de um sem-abrigo” publicado pela Oficina do Livro.

    “Ser um sem-abrigo não significa apenas não ter um teto para dormir. Significa termos de viver na rua, vinte e quatro horas sobre vinte e quatro horas, sem tudo o que durante a vida demos por adquirido. E sem as coisas mais simples e banais que todas as pessoas possuem”, é o segundo parágrafo da primeira crónica deste sem-abrigo que conheceu o abismo de viver nas ruas de Lisboa.

    Podíamos pensar à partida que Jorge Costa sempre foi um marginal, um toxicodependente, um “parasita da sociedade”, como habitualmente os especialistas classificam a origem das pessoas que vivem no limiar da pobreza.  Nada mais errado de se pensar. Afinal, Jorge Costa era um cidadão até considerado pelos seus pares que as circunstâncias da vida o empurraram sem explicação para a marginalidade. Nem tão pouco era um zero a matemática, um mau gestor da economia doméstica. Fez carreira como técnico administrativo até pertencia ao quadro da empresa.

            Contudo, a já tão conhecida “crise” económico-social fez sucumbir a firma e Jorge todos os seus colegas foram atirados para o desemprego. E todos os seus direitos adquiridos foram-lhes negados. Não houve lugar para a indeminização nem qualquer tipo de compensação. Nada, rigorosamente, nada. Restou-lhe o parco subsídio de desemprego para fazer face a todas as despesas.

            Foi esse o ponto de viragem de uma vida, aparentemente, pacata de funcionário de escritório. Uma bola de neve de problemas sem solução à vista.

            A sua situação agravou-se acabou nas ruas de Lisboa sem ninguém que desse a mão “Não tinha a quem recorrer. Amigos? Os poucos que tinha perdi-os à medida que a minha situação se agravava”[2]

            “A sua primeira noite passou-a num banco de jardim do Parque das Nações. E desse patamar abaixo do miserável não saiu durante oito meses. Passou a deambular pelo Parque da Nações carregando a mala e com a mochila às costas, como esperando alguma coisa, uma saída ou solução. Começara a observar aqueles que pediam moedas a quem passava, provavelmente a maioria sem-abrigo, nas entradas da estação de metropolitano”[3]

            O seu primeiro amigo foi o “Zé” um sem abrigo que o vendo sempre a deambular sozinho lhe ofereceu uma sandes de queijo e um sumo fora de validade. Jorge Costa agradeceu. Foi o seu primeiro amigo nas ruas e acompanhou-o sempre ao longo do período que viveu nas ruas, é dos únicos amigos que cita recorrendo ao nome próprio.

            “O mundo onde passei oito meses era uma autêntica selva. Era quase um por si. Por isso, normalmente, um sem-abrigo só tem outro sem-abrigo por companhia. É uma questão de confiança. É um parceiro.”[4],

Jorge Costa, ao passar do tudo ao nada deparou-se a primeira vez, com o problema mais básico de todos: a fome. Assim, é preciso salientar que, apesar, do ser humano ter muitos problemas: sociais, económicos, psicológicos, quando atinge o patamar mais baixo da sociedade e cai sem rede no chão, aquele problema mais aflitivo e angustiante talvez não seja o próprio isolamento a que foi condenado, mas, o mais básico dos básicos: o problema fisiológico da fome como é referido nas tão conhecidas teorias psicológicas de Maslow[5]. “A fome não é calma. A fome é revolta. A sensação de fome depois de estar um dia ou mais sem comer, além do mal estar-físico é acompanhada por uma angústia silenciosa, revoltada. Com dor. Porque é óbvio que não há comida há espera em lado nenhum e a fome vai continuar”[6].

    Todavia, a história trágica de Jorge Costa tocou em alguém que fez da história desumana de sem-abrigo uma mera passagem de oito meses. A sua história tocou nos píncaros e Jorge Costa foi salvo pela “manda-chuva”, como ele classifica esta heroína social, Teresa Bispo que além de coordenadora do projeto também era assessora do Vereador Manuel Grilo da Câmara Municipal de Lisboa, o criador do projeto social que arrancou Jorge Costa das Ruas e lhe devolveu a dignidade. Conseguiu um teto. Na crónica “tomei três duches quentes e andei pela minha nova casa, nu e a dançar” descreve a sua sensação de êxtase e superação que marcam o início de uma nova vida. Entrou no seu novo lar em 11 de maio de 2020. “Não sei descrever o que senti naquele momento. Encontrava-me numa sala bem decorada. Um sofá com quatro lugares com candeeiro de leitura, uma mesa de jantar estilo americano encostada a parede”, Jorge Costa continua a descrever até ao ínfimo pormenor a casa ultra-moderna com todo o conforto com que foi agraciado. Era passar do oito ao oitenta “desde que ficara sozinho na casa, parecia uma criança a querer experimentar todos os presentes recebidos na noite de Natal (…) brincava com o micro-ondas, brincava com a torradeira e com a cafeteira elétrica. Nem imaginam o prazer que me deu encher e arrumar o frigorífico e os armários de cozinha com todas as coisas que tinham vindo do “enxoval” da Teresa Bispo do Casal Vistoso[7].”

    Jorge Costa foi salvo, mas, muitos seres invisíveis continuam a vaguear anonimamente pelas ruas de Lisboa, a viver ao relento, sujeitos às intempéries e a lutar todos os dias por um pedaço de pão.

    Os sem-abrigo são sem dúvida a página mais negra da sociedade. Como é possível que nos primórdios do século XXI, num mundo em que quase todos tem acesso a tudo existir este género de pobreza. Seres humanos tal como nós, sem teto, sem comida, sem nada. Mais baixo que esta não-existência só a morte física. Parece um problema não das sociedades modernas mas típico do terceiro mundo.

    Jorge Costa no seu livro diz-nos “A sociedade em que vivemos inseridos ajuda quem está a subir. Quem está a descer leva um empurrão para descer ainda mais baixo”.

    Na última crónica do livro o autor sente que chegou ao fim. Durante um ano publicou catorze crónicas, em média dá um ritmo de uma por mês. A crónica final Jorge Costa faz um balanço dessa sua incursão no mundo da escrita. Afinal não percebia só de números também sabia usar a palavra. Por isso, para terminar esta análise ao livro de Jorge Costa recorrerei não apenas uma citação de Jorge Costa, mas, a um trecho mais alongado que exprime o seu estado de espírito já quase no final da sua vida.

    “Vivi e vivo na maior das realidades. Não tive nem tempo para perder com palavras bonitas dentro de frases bonitas. Mas sempre sonhei. Sempre. Até quando dormia encharcado, cheio de fome e frio e a cheirar mal que nem um animal. Sonhava sempre. Porque a única coisa que eu tinha, quando tinha algum tempo, era apenas o sonho. E o meu era simples, muito pobre, muito básico. A forma que eu vivia é que me limitava a sonhar assim. Eu sonhava novamente ser um ser humano e que me tratassem como tal. Aliás, os sem-abrigo sonham com coisas dentro dessa linha. E que linha é essa? É a linha onde as pessoas vivem sem aquilo que nos faz sentir humanos e nos dá dignidade básica. Nessa linha, procuramos um colchão, uma manta, uma sanita, uma cadeira…Procuramos água, um sítio para nos lavarmos, um prato de comida quente, uma peúgas lavadas, um corta-unhas que não seja cego e ferrugento, um casaco…Eu já não sonhava tinha os chamados sonhos comuns que todo o ser humano tem. Já não sonhava com uma casa. Só sonhava viver dignamente.”[8]

    Jorge Costa morreu a 20 de Abril de 2022 com 55 anos.

 

 

            No Jornal Público de 23.01.2022 indica que em Portugal - segundo os dados das autoridades oficiais e referindo-se ao ano de 2020 – 8107 pessoas vivem em condições de sem-abrigo.

 

Ana Margarida Alves

 

 

 

 

 



[1] “Diário de um sem-abrigo”, Jorge Costa, Pág. 183

[2] “Diário de um sem-abrigo”, Jorge Costa, Pág. 30

[3]  “Diário de um sem-abrigo”, Jorge Costa, Pág. 36-37

[4]   “Diário de um sem-abrigo”, Jorge Costa, Pág. 64

 

[5] A hierarquia das necessidades de Maslow é uma teoria da psicologia proposta por Abraham Maslow no seu artigo “A teoria da motivação humana, publicda em 1943 na revista Psychological Review que define cinco categorias das necessidades humanas: fisiológicas, segurança, afeto, estima e as auto-realização

[6] “Diário de um sem-abrigo”, Jorge Costa, pag.76

[7] Casal Vistoso – é um local emblemático em Lisboa.

[8] “Diário de um sem abrigo”, Jorge Costa, pag.177