Lei da Eutanásia: a morte com hora marcada ou a imprevisibilidade da vida

18-01-2023 20:51

 

 

“É mais fácil contar as estrelas do céu, as areias da praia que o grau de sofrimento que o coração humano pode suportar”

(autor desconhecido)

 

“Quando a dor é muito grande o sofrimento é silencioso”

Rubem Fonseca

            Será que o ser humano em profundo sofrimento físico e mental poderá em consciência decidir que chegou ao fim da linha e consciencializar-se que chegou a sua Hora ou poderá esperar que por milagre divino ou por avanço científico sairá do estado de apatia ou de dormência contínua que o colocou numa espécie de jogo de azar do lado oposto da vida em estado quase vegetativo.

            São estas duas faces, de uma mesma moeda que há anos a fio incendeiam os debates sobre o direito a morrer com dignidade ou  esperar pelo chamamento divino mesmo em estado de profundo sofrimento, fazendo-se cumprir à letra o artigo 24º da Constituição da República Portuguesa onde está expresso que “o direito à vida é inviolável”.

             E são estes dois prismas que nos últimos anos têm feito a cabeça em água aos deputados da Assembleia da República que tem visto gregos para fazer passar a Lei da Eutanásia. A despenalização da eutanásia está prestes a ver luz verde, mas, esbarra sempre com o travão do Presidente da República e do Tribunal Constitucional.

            Parece que a sua promulgação está dependente de questões de melhoramento textual que tornem as definições do respetivo decreto da Assembleia mais precisas, por forma, a não haver lacunas insanáveis. Assim, o decreto que define o direito à morrer com dignidade está  por um fio para ser posto em prática.

O texto que despenaliza a morte medicamente assistida foi aprovado no Parlamento, mas, ainda não passou do papel porque tem sido continuamente vetado pelo presidente da República (foi vetado duas vezes).

Na sexta-feira dia 9 de de Dezembro de 2022 foi novamente aprovado. No entanto, no dia 4 de janeiro de 2023 o presidente já remeteu novamente ao Tribunal Constitucional o Decreto 23/XV da Assembleia da República que regula as condições em que a morte medicamente assistida não é punível e altera o Código Penal.

Na versão que foi a votos ficou estabelecido que “a morte medicamente assistida” não é punível quando ocorre “por decisão da própria pessoa, maior, cuja vontade atual e reiterada, séria, livre e esclarecida, em situação de sofrimento de grande intensidade, com lesão definitiva de gravidade extrema ou doença incurável quando praticada ou ajudada por profissionais de saúde.

Desta vez, a expressão “doença fatal” cai. A redação que vem substituir as anteriores estabelece ainda um prazo mínimo de dois meses desde o início do procedimento para a sua concretização, sendo obrigatório a disponibilização de acompanhamento psicológico.[1]

Segundo a revista Visão de 8/12/2022 a primeira vez que se falou da possibilidade de despenalizar a Eutanásia foi em 1995. No entanto, há cerca de quatro anos que o diploma anda enrolado e a lei da eutanásia não há meio de “descolar” e ser posta em prática. Por isso, face à Lei atual um caso deste é considerado crime. Se a pessoa cuidadora agir sobre forte emoção e puser termo à vida  do doente terminal por completa exaustão e desarranjo psíquico  designa-se de homicídio privilegiado e pode ser punido com pena de um a cinco anos de prisão. Quando é a própria vítima que assim o deseja é considerado homicídio a pedido da vítima e é punido com pena até três anos de prisão. Ou se se tratar de crime de incitamento e auxílio ao suicídio é punível com pena de dois a oito anos de prisão.

Mas afinal o que é realmente a “eutanásia” e no que consiste?

Segundo uma definição sintética avançada pela revista Visão de 08/12/2022 eutanásia é a administração de fármacos que têm por objetivo provocar a morte por vontade do doente em sofrimento e sob supervisão de um profissional de saúde. A palavra tem origem grega e significa “boa morte”.

Também a “Wikipédia” apresenta uma definição na sua essência semelhante “a eutanásia é um ato intencional de proporcionar a alguém uma morte indolor para aliviar o sofrimento causado por uma doença incurável e dolorosa.

A Eutanásia de forma geral é feita com recurso a um profissional de saúde mediante pedido expresso do doente.

Entre os motivos invocados para  a prática da eutanásia podemos indicar: dor de intensidade insuportável, diminuição permanente da qualidade de vida por condições físicas como a paralisia, incontinência, falta de ar, dificuldade em engolir, náuseas, vómitos. Entre os fatores psicológicos estão a depressão, o medo de perder o controlo do corpo, a dignidade e a independência.

O artigo da Wikipédia sobre a eutanásia também refere que esta pode dividir-se em dois géneros:

  • Voluntária – a própria pessoa doente que de forma consciente expressa o desejo de morrer e pede ajuda para realizar o procedimento
  • Involuntária – a pessoa encontra-se incapaz de dar o seu consentimento para determinado tratamento e a sua decisão é tomada por outra pessoa, geralmente, cumprindo um desejo anterior expresso pela pessoa em sofrimento.

A eutanásia há anos que tem estado no centro do debate e tem dividido a opinião pública. Por um lado, argumenta-se que as pessoas têm o direito de tomar decisões sobre o seu próprio corpo e escolherem quando querem morrer e que o direito à morte também está implícita nos Direitos Humanos. Por outro, lado já é praticada, embora discretamente, porque não está legalizada.

Os argumentos que se rebelam contra essa forma de por termo à vida prendem-se sobretudo com questões de ordem moral e religiosa, nomeadamente: a prática da eutanásia é contra a vontade de deus; que não respeita a inviolabilidade da vida; que a permissão da eutanásia voluntária levaria à involuntária e poderia encapotar até a prática de homicídios; os cuidados paliativos já superam em grande parte o sofrimento humano sem necessidade de se antecipar a morte.

Na maioria dos países não existe legislação específica, sendo considerado suicídio quando praticado pelo próprio indivíduo e homicídio quando praticado por terceiros.

Tanto a eutanásia voluntária como o suicídio medicamente assistido são legais na Holanda, Bélgica, Luxemburgo, Colômbia e Espanha. O suicídio medicamente assistido é ainda legal na Suíça, Alemanha, Canadá, África do Sul e em cinco estados dos Estados Unidos. Porém, a eutanásia involuntária é em quase todos os países do mundo considerado homicídio.

Existem uma vasta argumentação que sustenta os prós e os contras desta temática.

Só nos fins do século XX e inícios do século XXI é que esta discussão ganhou mais visibilidade. Até porque nos séculos anteriores a esperança de vida era extremamente reduzida morria-se precocemente entre os 20-40 anos, principalmente de doenças parasitárias e infeciosas.

Atualmente, 2/3 das mortes dos países desenvolvidos são causadas por doenças degenerativas, particularmente, doenças cardiovasculares e cancerígenas. Com o avanço da medicina a esperança média de vida saltou para os oitenta anos. Uma faixa significativa da população morre com doenças degenerativas e com pouca qualidade de vida.

A Wikipédia faz referência aos principais argumentos a favor e contra:

  • autonomia para tomar decisões sobre o corpo e
  • o alívio do sofrimento,  são um dos muitos argumentos a favor

 

Contra a eutanásia podemos referir os seguintes argumentos:

  • Matar é intrinsecamente errado
  • Integridade da profissão médica
  • O potencial abuso (slipper slope)

Os teóricos da argumentação da autonomia referem que a pessoa tem direito de autodeterminar, tanto quanto possível, o curso da sua morte. Os proponentes desta argumentação acreditam se um doente terminal pedir auxílio a um médico este pode realizar o ato sem ser punido legalmente. Acreditam também que apesar da pressão social é possível tomar uma decisão informada no fim de vida. Em relação à objeção de consciência por parte do médico, os proponentes da argumentação favorável acreditam que este argumento não obriga o médico  a praticar o ato apenas lhe dá liberdade para o fazer de acordo com as suas convicções.

Os oponentes a esta argumentação acreditam que numa fase terminal da vida é difícil haver uma verdadeira autonomia uma vez que a decisão pode ser influenciada pelas pressões sociais, depressão, perturbações psiquiátricas.

Outro argumento favorável é item do alívio do sofrimento. Esta base teórica refere que nenhuma pessoa deve ser obrigada a submeter-se a um sofrimento injustificável durante uma doença terminal e que se deve ser dada ao paciente a possibilidade da morte assistida quando não é possível aliviar o sofrimento de outra forma.

Os oponentes a esta argumentação referem com os cuidados paliativos modernos é possível evitar a dor e o sofrimento. Os proponentes do argumento do alívio do sofrimento discordam e dizem que os cuidados paliativos com recurso a sedativos é praticamente colocar o doente em estado de apatia semelhante ao estado de “morte”.

Os teóricos da argumentação contra a morte medicamente assistida que refere que matar é intrinsecamente errado apoiam-se que quase todas as religiões, culturas ou sistemas sociais o proíbem. No entanto existem teóricos que acreditam ser aceitável em caso de auto-defesa, guerra ou pena de morte.

Outro argumento contra a morte medicamente assistida prende-se com a integridade profissional. Os proponentes desta teoria alegam que o Juramento de Hipócrates proíbe os médicos de matarem o seu doente uma vez que a missão destes é salvarem vidas e não o contrário.

Porém surgem vozes oponentes em que dizem que o texto original do juramento há muito que foi ultrapassado. Também o texto original proibia esses profissionais de realizar cirurgias, administrar medicamentos e cobrar dinheiro.

Por último, podemos ainda referir com o argumento contrário a essa prática o potencial abuso (slipper slope). Os teóricos desta teoria referem que a morte medicamente assistida pode propiciar abusos no futuro. Os seus oponentes referem que podem haver razões de força maior que superam as escolhas pessoais e individuais. Contudo os proponentes desta teoria rejeitam totalmente e referem que isso se baseia em pressão económica, ganância, insensibilidade e outros fatores que influenciam médicos e instituições de saúde e sociedade.

 

O que a Lei vai trazer de novo?

A quem se dirige:

  • A todo o cidadão nacional ou residente em Portugal que seja maior de idade e se encontre numa situação de sofrimento de grande intensidade provocado por um a lesão definitiva de grande gravidade extrema ou doença incurável

Como se pode contabilizar o grau de sofrimento humano:

  • Para se ter  acesso à eutanásia o sofrimento pode ser físico, psicológico ou espiritual e tem por base uma doença incurável e grave, ou lesão definitiva de gravidade extrema, persistente, permanente que seja considerado incurável. Ou seja, tem que estar em causa uma doença que ameace a vida que já esteja em fase avançada e irreversível.  Um doente que reúna esses requisitos deve falar com o seu médico, preencher um documento escrito assinado pelo próprio ou representante legal acompanhado por relatório de um especialista.

O processo tem que ser enviado para a Comissão de Verificação e Avaliação (CVA) que aprovará ou reprovará o pedido.

 

 

            Quanto tempo demora a avaliação e procedimento:

  • Prazo mínimo de dois meses desde o início do procedimento. O médico orientador tem 20 dias para dar o seu parecer e o segundo especialista 15 dias. Caso o médico orientador e ou o médico especialista tenham dúvidas sobre a capacidade da pessoa solicitar a morte medicamente assistida ou admitam que a pessoa seja portadora de perturbação psíquica ou condição médica que afete a sua capacidade de tomar decisões é obrigatório um relatório de um médico psiquiátrico.

O doente em caso de aprovação do procedimento tem confirmar a sua intenção em por termo à vida pelo menos seis vezes durante todo o processo. O procedimento pode ter lugar num local que apresente condições clínicas de conforto adequadas. Preferencialmente, num Hospital do Serviço Nacional de Saúde ou nos setores privados e social.

A base teórica está agora nas mãos do Tribunal Constitucional desde o dia 4 de janeiro de 2023. Será que é desta que a intrincada Lei da Eutanásia será aprovada e Portugal passará a ser mais um dos países que permite a Eutanásia também conhecida como morte medicamente assistida. É caso de esperar para ver.

 

Bibliografia de Apoio:

 

 



[1] Fonte: Revista sábado (consultar bibliografia)