Nem os livros de Agatha Christie escapam ao "lápis azul" da censura...

30-03-2023 12:51

 

 

 

                Pelo mundo inteiro vive-se uma espécie de loucura de censura de escritores que viveram em outras épocas em que a sociedade se regia por outros valores e a igualdade, a democracia e a fraternidade andava pelas ruas da amargura.

Apesar de os valores de uma consciência sensível ao ser humano independentemente da sua raça ou religião já serem discutidos desde sempre pelos grandes pensadores da época na prática a difícil tarefa de mudar mentalidades só começou a surtir  efeitos no século XX.

               Já  se falou que nos Estados Unidos grupos mais conservadores estão a esconder livros dos alunos relacionados com temas Woke.

               Numa definição encontrada na Wikipédia encontra-se a seguinte explicação. Woke é um termo político de origem afro-americano que se refere  a perceção e consciência de questões relacionadas com a justiça social e racial. O termo deriva da expressão do inglês vernáculo afro-americano “staywoke[1]” e refere-se a uma consciência contínua destas questões. No final da década de 2010,  o termo woke foi adotado como uma gíria mais genérica, amplamente associada a políticas identitárias, causas sociais, liberais, feminismo, ativismo, LGBT e questões culturais.

               Assim a ala mais conservadora ao proibir que se fale de temáticas que versam sobre igualdade identitária vai fazer as pessoas acreditarem que o mundo é perfeito. Não existem desigualdades, não existem diferenças, não existem pessoas que discriminam as outras. Não falar, tornar certas temáticas em não assunto, em uma não existência é já por si uma discriminação e uma desigualdade de representação social. Porque tocar com o dedo nas mais diversas feridas sociais torna-se por vezes muito incomodativo…

               Por outro lado, na Europa, vive-se um movimento oposto, um conjunto de pessoas com a sensibilidade mais aguçada manifestam-se contra o uso de expressões mais ofensivas, raciais, de discrição física e identitárias.

               Esse movimento contra a s expressões ofensivas é tão forte que não querem só corrigir o futuro, mas, também branquear o passado. Assim, as várias obras dos vários autores estão a ser alvo de uma atitude de reescrita.

               Já foi notícia que as obras de Enid Blyton iriam ser rescritas, agora surge na berlinda a imensa obra de Agatha Christie.

Segundo o jornal on-line Publish News de 29/03/2023 “algumas obras clássicas da escritora britânica Agatha Chistie tiveram trechos alterados ou removidos”. Foram retiradas descrições  indevidas, referências racistas na sua edição em Inglaterra da editora Harper Collins segundo o jornal inglês “Telegraph”.

               A notícia sobre este hiato nas obras da escritora policial mais famosa de todos os tempos veio depois de se ter instalado a polémica com as obras de Roald Dahl autor do livro “Charlie e a fábrica de chocolate”, a obra de James Bond de Ian Fleming também estão a ser reescritas.

               Diversos trechos polémicos dizem respeito à diferença física das personagens, especialmente personagens que os protagonistas dos livros se encontrem em países fora do Reino Unido.

               Foram alterados expressões como “oriental”, referências a uma personagem feminina “torso de mármore preto como um escultor teria apreciado”. A palavra “n”  que em inglês é um termo racistas que se aplica a pessoas negras.

               Todavia, em Portugal, a editora portuguesa Leya, pôs o travão a essa espécie de loucura da reescrita de histórias de autores de outras épocas em que as mentalidades eram outras.

               Assim  segundo uma notícia da rádio Renascença (on-line) a editora “não prevê qualquer revisão por considerar que qualquer limitação da linguagem é, em si, uma limitação  ao pensamento e a formação de uma visão crítica da sociedade”.

No entender do grupo editorial este tipo de censura é típica de “quem quer impor uma certa realidade e uma certa forma de estar, considerando fundamental garantir a liberdade de quem escreve, de quem edita e de quem lê”

               É certo que na atualidade não se pode permitir o racismo e expressões jocosas relacionadas com as características físicas e psicológicas de uma pessoa/personagem.

               Todavia reescrever o que já foi escrito há décadas parece algo exagerado. É uma espécie de estilhaçara as características de um autor e da sua mentalidade à luz de uma época mais recuada.

               E por outro lado, é apagar a história. É como dizer que desde sempre houve sempre consciência para a sensibilidade com  a pessoa humana. É uma forma de branquear a história da literatura e a imagem do próprio autor.

               Penso que é muito mais equilibrado dizer que no passado houve autores que usavam expressões racistas e retrógadas, porém, novos tempos de mudança surgem e temos ser diferentes e usar a escrita ao serviço das igualdades identitárias e de não discriminação.

               Por outro lado, tudo depende do contexto porque por exemplo banir nos livros de Agatha Christie o termo “orientale “cigano”. É preciso compreender se o contexto é ofensivo para a raça em questão ou não. Porque esta medida pode até ter um efeito adverso de se ignorar outras identidades não se está a caminhar para uma espécie de supremacia branca, como se existisse uma só raça e uma só nação.

               Assim, tudo depende do contexto.

               É preciso saber distinguir se as referências étnicas são ofensivas ou não

               Esta atitude radical parece algo exagerada.

               Ninguém, por exemplo foi refazer o filme “E tudo o vento levou” que hoje praticamente já não é visto por se considerar que os protagonistas eram racistas. E as personagens de raça africana era representados sempre como serviçais e de forma depreciativa.  A história e os valores preconizados já nada dizem as sociedades atuais. Apenas se deixou de ver o filme.

               Pronto.

               Também por exemplo a obra portuguesa Os Maias de Eça de Queirós, tem algumas passagens racistas. E que se saiba ainda ninguém se atreveu a reescrever uma das maiores sumidades da literatura portuguesa nem se deixou de ler porque o valor global da obra é muito superior às expressões racistas que o autor até pode apenas ter utilizado para caraterizar a sociedade da época e não ser a definição da sua ideologia. Acredito que sim, pois,  a série da RTP “O Consul em Havana” retrata Eça como um homem humano, sensível e anti-escravatura e um cidadão do mundo que tudo fez para salvar uma menina chinesa das mãos dos esclavagistas em Cuba, num dos seus primeiros cargos oficiais.

               O contexto é fundamental. O autor não pode ser punido apenas por tentar caraterizar uma época.

               Porém, quanto ao que ainda está para vir é importante que os novos escritores tenham uma mente mais aberta e a discriminação identitária ofensiva nunca mais se repita e não seja mais tolerada.

 

Ana Margarida Alves



[1] Staywoke – expressão que em língua portuguesa significa continue acordado