O uso do véu islâmico é ainda cerne de discórdia no Irão em pleno século XXI
Eça de Queirós tem uma expressão literária, "Sobre a nudez forte da verdade, o manto diáfano da fantasia" que nos remete um pouco para linha ténue que interliga a realidade e a imaginação. Sobre o que é claramente revelado e o que está oculto.
Parece que o mundo Islâmico leva essa necessidade de segredo ao extremo que ainda hoje se travam verdadeiras revoltas populares por causa dos usos e costumes que chegam ao extremo de perseguirem, torturarem, principalmente, as mulheres por pequenos deslizes no cumprimento do código de vestuário oficial tudo em nome de uma virtude e de uma moralidade arcaica.
Parece incrível em pleno século XXI, no entanto, é verdade, no Irão, uma jovem, Mahsa Amini apareceu morta, nos finais de setembro, depois da “polícia da moralidade” a ter detido por não estar a usar corretamente o véu islâmico.
Essas notícias chegam até nós que vivemos no extremo da Europa ocidental e causam-nos um misto de perplexidade e estranheza… onde o corpo feminino há muito que deixou de ser um mistério. Os códigos rígidos do decoro há muito que caíram no esquecimento. Hoje a nudez é praticamente uma banalidade. Só o frio rigoroso do inverno faz a mulher moderna optar por “excesso de trapagem”. As roupas leves e frescas surgem em massa por todo o lado a apelarem a leveza da simplicidade, com um pormenor ou outro que inspiram até uma certa sensualidade. Longe vão os tempos das roupas grossas e disformes rentes aos pés que eram a regra geral.
Salvo, o rigor moderado ditado pelo bom senso adaptado a nível laboral. As pessoas de modo geral, mal deixam os seus locais de trabalho e saem para a rua, dissipa-se, de imediato, o rigor dos fardamentos oficiais, optando-se por uma certa informalidade. O pessoal dos escritórios tira as gravatas e calça sapatilhas - tratando-se dos elementos sexo masculino, é claro - os trabalhadores em geral despem as fardas de trabalho e optam por algo mais leve e arejado.
Quanto, as mulheres de forma geral, tem a tendência de soltar os seus cabelos livrando-os da prisão dos elásticos, surgindo livres, sem amarras - que hoje em dia devido aos truques de beleza já pouco respeitam as origens e assumem todas as cores, ora mais discretas ora mais vibrantes…- num autêntico clima de liberdade que se respira nos países democráticos.
Surgiu no passado na América, um movimento que no mundo inteiro ficou conhecido como a “queima dos soutiens”. Um protesto público com a participação de 400 ativistas do “Women´s Liberation Moviment” (WLM) aquando do concurso “Miss América” em 7 de setembro de 1968. As feministas manifestaram-se contra os códigos do eterno feminino, da objetificação da mulher impostos pelo poderio masculino. As ativistas dispuseram no chão, sapatos altos, cílios postiços, maquilhagens, revistas femininas, espartilhos…
Os movimentos da libertação da mulher espalharam-se um pouco por todo o mundo, onde a mulher se sentia mais livre de ser. Queriam assumir a sua própria identidade livrando-se dos códigos femininos vigentes que as ora as transformavam em “bárbies” ou em fadas do lar instintivamente vocacionadas para as tarefas domésticas e para o cuidado da sua prole.
Naquela época as feministas eram um tanto ou quanto radicais…Hoje em dia vive-se um ideal de identidade mais temperado. Nem tudo ao mar nem tudo à terra.
Todavia, foi a ida dos homens para a guerra mudou tudo. Gradualmente, as mulheres foram ocupando o lugar que a sociedade destinava, exclusivamente, aos homens. Inverteram-se os papéis de princesas salvas pelo herói para terem que assumir o papel de heroínas, ganhando o gosto pela independência e pelos movimentos da emancipação feminina.
Quando as guerras terminaram e se passou a viver num clima de paz, os homens já não conseguiram satisfazê-las com o ideal de esposas dóceis cuidadoras dos “maridinhos” e dos “filhinhos” remetendo-as de novo para o Lar.
Desejavam ser mais. Donas do seu próprio destino. Não obedecendo mais a códigos de conduta, de vestuário ou até aos códigos distintivos de estratificação social impostas pelo Homem.
E o que começou por ser a ocupação das funções mais triviais do trabalho fora de casa, logo ambicionaram ser muito mais. Compreenderam o “logro” da sua submissão e desejaram desempenhar funções de maior complexidade. As Universidades massificaram-se com o poderio feminino. E atualmente, existem estudos que revelam que as mulheres estão em maioria no Ensino Superior.
Os ventos de mudança vindos da América e da Europa Ocidental costumam ser uma inspiração… que se espalham pelo mundo. E num mundo vertiginoso da “Era da Informação global”, sem segredos e sem filtros onde as redes sociais tornam em segundos viral uma pequena notícia insignificante que aconteceu, por exemplo nos confins do Paquistão, o proibido passa a ser permitido com o jogo da influência dos códigos sociais de diferentes países e contextos que os uniformiza, espalhando-os pelo mundo inteiro.
Todavia, o Médio-Oriente que fica no “reino do meio” entre a Europa Oriental e a Ásia Oriental onde está incluída uma das populações mais populosas do mundo: a China, existe um mistério que faz continuar, alguns países dessa zona geopolítica durante tantos séculos mergulhada num obscurantismo impressionante. Como se sofressem de “Autismo” e vivessem sobre si mesmo, não deixando entrar nessa zona blindada qualquer inspiração do mundo em redor, pelo menos oficialmente.
Tudo o que muito foi considerado arcaico no mundo inteiro ali continua vigente.
Ali a religião muçulmana está acima de qualquer vento de mudança e ali o nosso poeta Camões quando diz “mudam-se os tempos mudam-se as vontades” não conseguia fazer nada.
Todo mundo gira em ritmo acelerado e no mundo árabe tudo permanece, impreterivelmente, inalterável e perene. Não há organização mundial, Lei Internacional que consiga penetrar num mundo tão secreto. Tudo o que se passa no seu interior não é revelado para o exterior.
A imagem que nos deixam vislumbrar é de um mundo completamente fanático, obsessivo, arcaico onde as mulheres são o principal alvo de tanto obscurantismo.
Todo o mundo ficou chocado com os últimos acontecimentos que se estão a desencadear num país que fica no coração do médio-oriente – o Irão.
Mahsa Amini presa por não usar corretamente o “Hijab”, véu obrigatório para as mulheres. Foi encarcerada sem explicação e três dias apareceu morta.
Esta morte não caiu no esquecimento, levando a uma revolta popular acérrima contra os códigos opressivos que ainda vigoram no Irão.
Um artigo da revista visão de 6/10/2022 “Vozes do Irão, ou vencemos ou vencemos”, assinado pela jornalista Margarida Santos Lopes dá-nos algumas pistas para que esta história possa ser compreendida melhor. Mahsa Amini, uma jovem curda oriunda de Saqqez, no Curdistão que estava de férias em Teerão (capital do Irão) acompanhada pelo seu irmão antes de ingressar na faculdade. Tinha o sonho de vir a ser médica.
No momento, em que deu este trágico incidente, vestia-se de negro e usava uma larga túnica como exige a lei. Contudo a “Patrulha da virtude” implicou com o seu imodesto “Hijab”, ligeiramente descaído. Foi conduzida numa carinha para o Centro de Interrogatório conhecido como “Vozara”. O irmão quando foi saber como ela estava descobriu que Mahsa estava em coma, acabando por morrer três dias depois.
Esta tragédia humana desencadeou uma onda de revolta no país envolvendo todos os quadrantes da sociedade indignados com todas as atrocidades deste regime político que não tem limites para a crueldade e para o fanatismo. O motim estendeu-se por oitenta cidades iranianas e já provocaram mais de 50 mortes, centenas de feridos, segundo uma notícia da “Visão” on-line 25/09/2022. Entre as vítimas mortais encontra-se Hadis Najaf, cuja sua história se tornou viral nas Redes Sociais e já se transformou num símbolo das manifestações contra o regime. A sua perseguição e consequente morte ficou apenas a dever-se porque, apenas por minutos, aparece em público com o cabelo claro e sem o obrigatório “Hijab”.
No século XXI, em alguns países da Ásia, subsiste a obrigação de cobrir o cabelo em público. A polícia fiscaliza ainda as mulheres por usarem casacos curtos, acima do joelho, calças justas e Jeans com buracos (ou rotos) além de cores coloridas entre as regras. Assim para cumprir essa obrigação de descrição, as mulheres têm como código de vestuário a utilização do “Hijab[1]., que significa cobertura para esconder os olhares. Trata-se de um conjunto de vestimentas preconizadas pela doutrina Islâmica.
No Irão, Hijab é sinónimo de vestuário que permite a “privacidade, a modéstia e a moralidade.
Esta indumentária é usada pela maioria das mulheres muçulmanas que vivem em países de religião muçulmana. Hoje em dia, o uso do “hijab” é obrigatório na Arábia Saudita e na República do Irão, além de zonas regionais, noutros países como é o caso da Indonésia.
Segundo, o artigo de Margarida Santos Lopes publicado na Visão já acima referenciado talvez o maior inimigo da mulher, nos últimos 43 anos de governos misóginas seja o do atual presidente Ebrahim Raisi. Foi ele que reforçou o sistema de perseguição ao sexo feminino. A jornalista refere um depoimento de uma ativista, Sayed (cujo o apelido prefere não revelar), conhecida por se manifestar contra as injustiças do regime. Apesar de ser uma mulher culta, “avant la lettre”[2], contra o uso do Hijab e outras atrocidades não escapa à fúria e as represálias dos “Senhores da Moralidade” no Irão. “ninguém faz planos de futuro.(…). As regras são cada vez mais rígidas. O regime controla o que vestimos e como devemos rezar. Vigia-nos nos espaços públicos e privados. Temos receio de nos apaixonar e amar. O Pai é quem escolhe com quem podemos casar. Há pais que casam as filhas aos 9 anos. A mulher mesmo vítima de violência doméstica, precisa de autorização do marido para se divorciar. Às mulheres é exigido que fiquem em casa a cuidar dos filhos e a servir os maridos. Não saem do país sem a presença do guardião masculino. A república Islâmica está no centro da talibanização” (do Irão).
Desde a minha adolescência que fixei que o Irão seria um país perigoso e avesso aos costumes modernos . E passados mais de trinta anos o pavor (talvez eivado de preconceito) dos costumes extremistas com que os árabes tratam as mulheres mantém-se tão atual como quando em meados dos anos 90 vi o filme “Rapto em Teerão” realizado por Brian Gilbert, que conta a saga de uma mulher americana que casa com um médico oriundo do Irão que a alicia, alguns anos depois do casamento, a visitar a sua família no seu país Natal. A jovem esposa, ao chegar ao Teerão, vê-se envolvida numa teia de repressão e violência doméstica. O marido revela o seu lado “lunar” que sempre esteve oculto. Todo o filme é um hino à coragem de uma mulher que faz tudo para voltar para América não deixando para trás a sua filha.
Os filmes “hollywoodescos” são conhecidos podem estar repletos de mensagens a roçar no racismo contra os hábitos culturas das minorias. Porém, as atitudes contínuas de repressão contra a mulher instigadas pelas Autoridades Islâmicas levantam a questão: A super potência América e os países ocidentais são racistas contra as culturas árabes ou o ódio e a violência que são infligidos contra a mulher árabe é intolerável, agredindo os mais básicos direitos humanos, a liberdade de ser pessoa a que ninguém pode ficar indiferente?!...
Assim, enquanto por todo o mundo a uma abertura de mentalidades os países muçulmanos fecham-se em si próprios e apoiam-se no fanatismo desculpando-se que seguem os mandamentos de “Alá”. Aí a Religião que perdoa tudo…até os atos mais bárbaros.
Todavia já houve tempos em que houve uma brecha nesta muralha insondável de arcaicos costumes do Irão. Em 1936, durante a Dinastia de Pahlavi, Reza Khan deu à mulher vários direitos.
Começou por emitir um decreto que proibia o lenço, a capa que ocultavam o rosto, o cabelo e o corpo das mulheres, impondo pesadas sanções em quem não cumprisse a nova Lei. Essa medida mexeu com os arreigadas costumes do Irão mais tradicional predominante nas áreas rurais (80% da população), mas também uma antiga elite iraniana (Qajar). A maioria isolou-se em casa e retirou as filhas das escolas.
Reza khan queria transformar o Irão num país moderno e mostrou-se irredutível, ofereceu oportunidades de educação e emprego às mulheres.
Contudo, o seu sucessor, Mohammed Reza Pahlavi, em 1941, já foi um pouco mais brando deu à mulher o direito usar ou não usar o véu.
Este imperador alargou os horizontes femininos da cultura à política. Em 1963 as mulheres conquistaram o direito de voto e de ser eleitas para os parlamentos e governos. O país ganhou pela primeira vez duas ministras e várias ministras-adjuntas, diretoras-gerais e embaixadoras.
Em 1967, graças à novas deputadas foi aprovado uma histórica Lei de Proteção da Família que retirou aos homens o monopólio no que toca ao casamento, ao divórcio e à tutela dos filhos.
Todavia em 1979, quando a maioria dos países ocidentais fazia a transição para democracias, o Irão mergulha no obscurantismo trazido pelo “ayatollah Khomeini”. Esta nova autoridade iraniana exilado em Paris volta à pátria para derrubar 2500 anos de monarquia e instaurar um governo jurista “Vellayat e Faqi”
Na vanguarda da Revolução Islâmica contra a “ocidentoxicação” estavam milhões de mulheres. Esperavam uma ampliação de direitos e não uma contração. Porém, rapidamente, perderam as ilusões. O primeiro alarme surgiu nas montras da lojas com os manequins perderam a cabeça, os olhos, o vermelho dos lábios e das unhas pintadas porque era preciso reprimir a identidade feminina. Imediatamente o Chador negro passou a ser obrigatório em cargos oficiais. E em 1983, o “Hijab” passou a ser obrigatório a partir dos sete anos. Quase todas as leis anteriores foram revogadas ou suspensas inclusive a inovadora Lei da Família. Surge um novo código penal que instituiu o apedrejamento atá à morte da mulher adultera e 70 “chicotadas” a quem infligisse o código de modéstia no vestuário.
O retrocesso mental no Irão quanto aos direitos da mulher, não dá sinais de abrandar, atualmente encontra-se no poder Ebrahim Raisi que é talvez o mais sanguinário na perseguição da mulher, reforçando a política de vigilância e rigor moral para com a mulher.
Esses retrocessos históricos incompreensíveis leva-nos a pensar que o Irão dos inícios dos anos 80 foi levado como por artes prestidigitação por uma máquina do tempo para um mundo inenarrável e inexistente, pelo menos é a imagem que o Irão transmite para o exterior.
As atrocidades contra a cultura da mulher árabe não se ficam só pelo Irão. Também no Afeganistão os “Taliban” impõem sobre a mulher um regime repressivo, impedindo-as de se desenvolverem a nível cultural e intelectual, retirando-as das escolas, proibindo o acesso à música e aos filmes entre outras coisas.
Porém, com a queda das Torres Gêmeas nos Estados Unidos, em 2001, devido a um ataque terrorista organizado pelo Líder Osama Bin Laden, os americanos invadiram o Afeganistão e expulsaram os “Taliban” do poder.
Foi uma lufada de ar fresco para o povo afegão, sobretudo para as mulheres.
Contudo em 2021, através de uma guerra relâmpago voltaram ao poder. Aparentemente, com um discurso mais suave. Mas tendo como raízes da sua doutrina o obscurantismo e arcaísmo, mais cedo ou mais tarde, é certo e sabido, encetarão a perseguição contra a mulher.
Toda a repressão que existe ainda em alguns países Islâmicos choca toda a comunidade Internacional. E talvez uma das primeiras acronismos que salta à vista é o código do vestuário.
Uma das questões que mais vezes vem a lume é a obrigatoriedade do uso do véu que se interrelaciona com a questão da imagem pública que a mulher iraniana tem e que transparece para o exterior.
O cerne desta questão gira em volta do cobrir ou destapar, com véu ou sem véu. Reprimir a mulher ou deixá-la se auto-determinar.
O mundo inteiro é sensível a este drama que vive a mulher iraniana. E a há anos que escritores, jornalistas, especialistas gastam rios de tinta em defesa da mulher iraniana contra o obscurantismo que se vive no médio oriente.
Na Europa, como até no mundo muçulmano mais avançado aprovam-se leis proibindo o véu ou algumas formas de véu.
Mas, mais que criarem-se Leis é preciso agitar as mentalidades. Para o muçulmano mais arreigado no tradicionalismo o véu ainda é a forma de esconder a mulher contra os olhares do mundo. E é tão difícil levá-lo a pensar o contrário…
Em França, onde impera o laicismo nas escolas há anos que se esforçam por banir os lenços islâmicos, porque representa um símbolo religioso e a escola quer-se laica. Também, usam o mesmo peso e a mesma medida, para banir o crucifixo, símbolo religioso católico da ostentação escolar.
Todavia, essa tentativa forçada de mudar mentalidades acaba por ter efeitos negativos na educação das meninas muçulmanas que acabam por deixar de frequentar o Ensino Oficial. Apesar do mundo árabe ter costumes um tanto ou quanto inteligíveis para os ocidentais, a perseguição ocidental contra alguns costumes muçulmanos pode desencadear autênticas guerras culturais e religiosas.
O uso do véu talvez mais que uma questão legal é uma questão cultural e o seu uso mais que uma imposição ou proibição deve ser uma opção da própria mulher.
Apesar do uso ou não uso do véu não se prender tanto com o objeto em si mesmo, mas, com o seu significado obscuro, repressivo e castrador que o seu uso implica.
O âmago da questão interliga-se com a ténue linha que separa o seu uso como símbolo cultural do seu uso como símbolo da repressão feminina.
Ana Margarida Alves
Bibliografia Consultada:
- https://visao.sapo.pt/atualidade/mundo/2022-09-25-mulher-de-20-anos-simbolo-da-revolta-das-mulheres-no-irao-morre-baleada-durante-os-protestos/
- https://cnnportugal.iol.pt/irao/mahsa-amini/pais-de-jovem-morta-sob-custodia-no-irao-apresentam-queixa-contra-a-policia/20220928/633462b80cf2f9a86eb7dd81
- Https://pt.wikipedia.org/wiki/Hijabe
- Revista visão N.º 1544, 6/10 a 12/10/2022
[1] Https://pt.wikipedia.org/wiki/Hijabe
[2] A expressão “avant la lettre”, significa a frente do seu tempo; traduzindo literalmente pode significar antes da letra, (antes da Lei, antes da letra da lei o impor)