Os crimes imperdoáveis contra menores que estão a atemorizar a Igreja…
Aqui diante de mim,
eu, pecador, me confesso
de ser assim como sou.
Me confesso o bom e o mau
que vão ao leme da nau
nesta deriva em que vou.
Miguel Torga,
“In Livro das Horas”
A igreja têm-se visto envolvida num dos maiores escândalos de sempre: A pedofilia no seio da Igreja. Apesar desde sempre existirem rumores só no fim do século XX e primórdios do século XXI começaram a agitar fortemente a sociedade civil e levaram a Igreja a ter que tomar uma posição de força face à tamanha “bárbarie” de que se tem vindo nos últimas décadas a levantar-se a ponta do véu.
E habitual posição de benevolência, ocultação e secretismo teve que dar lugar a confrontação dos factos, ao encaminhamento para os meios judiciais e consequentemente, os sucessivos escândalos transpirarem inevitavelmente para a praça pública.
Esta situação que tem abalado por todo o mundo a confiança na Igreja Católica e os milhares de casos surgem em catadupa. Em França, um Relatório de uma Comissão Independente veio a revelar 330 mil crianças foram abusadas sexualmente por membros da Igreja Católica francesa.
Portugal também reagiu, prontamente, a esta onda de travar de vez com um dos maiores crimes da Igreja ao longo dos tempos: o abuso sexual de menores. Na, segunda-feira, dia 13 de Fevereiro foi revelado os dados de um Relatório elaborado por uma Comissão Independente liderada pelo pedopsiquiatra Pedro Strech.
Segundo, o “Diário de Notícias”, na sua edição on-line de 13 de Fevereiro de 2023 das 11:38, a Comissão Independente para o estudo dos abusos sexuais de crianças na Igreja Católica começou a receber testemunhos em 11 de Janeiro de 2022. No total foram validados 512 testemunhas relacionadas com 4815 vítimas.
A socióloga Ana Nunes de Almeida, pertencente também à Comissão confirma aos “Diário de Notícias” que 97% dos abusadores são do sexo masculino e em 77% dos casos padres. Além do mais 47% dos abusadores fazia parte das relações próximas com a criança.
Os casos analisados correspondem a um período que vai de 1950 a 2022, cerca de 72 anos .
Pela comunicação social também ficamos a saber que as crianças abusadas que foram alvo de crime tinham em média cerca de dez anos (os abusos ocorreram principalmente entre os 10-14 anos) e depois da ocorrência em 43% dos casos a denúncia só ocorreu quando contactaram a comissão
De todos aqueles que fizeram queixa à Igreja apenas em 4% dos casos houve lugar a queixa judicial
Segundo um artigo do jornalista António Moura Santos no site 24.sapo [1]explicita que os crimes ocorreram principalmente em seminários, Igrejas e Escolas Católicas.
Também as décadas de 1960, 70 e 80 do século passado é o período em que ficam registados mais abusos no seio da Igreja Católica.
Um dos motivos porque muitos casos ficaram por identificar é a omissão pois foi comprovado que os relatórios encontrados nos Arquivos Diocesanos eram ambíguos. É frequente o problema dos abusos sexuais não ser referenciado claramente nesses relatórios da Igreja.
Assim no sumário do Relatório da Comissão Independente apresentado no dia 13 de Fevereiro conclui que os dados apurados nos Arquivos Eclesiásticos relativamente a incidências de abusos sexuais ao longo dos anos deve ser a “ponta do Icebergue”.
Também ao ler por alto os dados do relatório português me faz refletir que muito há ainda por revelar debaixo dos tapetes eclesiásticos. Em França um relatório semelhante deu conta que 330 mil crianças foram abusadas.
Em Portugal, o número de vítimas não chegam aos cinco mil baseado no testemunho de 512 testemunhas. É certo que os países têm dimensões diferentes, todavia percebe-se que os crimes comprovados em Portugal sabem a muito pouco. Muitos dos crimes ainda devem estar ocultos, por medo, vergonha ou intimação não foram ainda revelados.
Ou talvez mesmo porque mexer nos fantasmas do passado é sempre um ato doloroso e emocionalmente complexo. E também talvez porque muitas pessoas preferem que as suas histórias fiquem no anonimato, evitando o escrutínio público e evitando a sua vida devassada. E além do mais ainda terem que passar pelo dever de provar atos tão inconfessáveis e vexatórios e verem a sua história de vida ser considerada inverosímil e não ser validada por falta de testemunhas ou provas. O silêncio nestes casos é talvez um arma contra a dúvida de quem os escuta.
Outra situação que surpreende é que de um número ainda vasto de caso só 25 processos é que têm pernas para andar nos meandros da Justiça. E só pode ser esse o número devido ao anonimato e também à prescrição. Uma vez que a Lei Portuguesa impede que muitas vítimas sejam ressarcidas nem que seja moralmente de tamanha atrocidade.
A Comissão Independente sugeriu que a prescrição se estenda até aos trinta anos das vítimas pedindo à Assembleia da República a alteração da Lei. Atualmente, a lei guia-se pelo artigo 118º do Código Penal que a vítima do crime sexual sendo menor de idade pode apresentar queixa até aos 22 naos de idade.
Ora se a dor e o sofrimento das crianças que sofreram essa “bárbarie” vagueiam para sempre nas suas memórias e os condicionaram a ter de certo um a vida trivial que todas as crianças têm direito independentemente da sua origem ou condição porque será que perante a lei a denúncia do seu sofrimento insanável tem prazo e prescreve. Não faz muito sentido.
A denúncia de abusos sexuais contra menores devia ser no mínimo imprescritível ou então com um prazo de prescrição muito mais extenso.
Sou apenas uma cidadã comum mas pelo que observo e vou lendo por aí. As crianças que são vítimas de abusos levam um tempo muito mais vasto a organizarem-se, minimamente, emocionalmente. E assim só muito mais tarde é que se encontram preparadas para revelar as suas mágoas que lhe roubaram a infância. Romper a barreira do silêncio quase impenetrável pode levar quase uma vida porque é sem dúvida muito mais fácil pensar, que tais atos nunca mais irão acontecer, ao esquecer é quase imaginar que nunca aconteceu.
Por isso, no meio leigo entendimento de pessoa humana a Justiça tem que andar ao ritmo do crescimento físico, psíquico e emocional da criança e não é a criança alvo deste crime que tem que andar ao ritmo dos prazos da Justiça Portuguesa.
A Igreja por todo o mundo tem se sensibilizando com tão horrendos crimes infligidos contra as crianças. Talvez empurrada pelo Encontro de todas as Conferências Episcopais no Vaticano para o Encontro sobre a Proteção de Menores na Igreja para abordar a questão do abuso sexual de menores por membros do Clero, que decorreu em 2019.
O papa promulgou também a Carta Apostólica “Vox Lux Mundi”. As novas regras entraram em vigor a 1 de Junho (Dia Mundial da Criança) de 2019 e põem fim à Lei do Silêncio. A carta que foi promulgada a 8 de Maio de 2019 “impõe a obrigação de denunciar não só o abuso sexual de menores mas também o uso ou distribuição de pornografia infantil ou juvenil e o abuso sexual de adultos”.
Esta atitude revolucionária no seio da hermético da Igreja Católica veio trazer uma verdadeira revolução mental e criar comissões de estudo dos casos por todo o mundo. A igreja Católica em Portugal mostrou-se recetiva e abriu a sua casa à Comissão Independente para produzirem um Relatório que espelhasse a verdadeira dimensão do problema em Portugal.
Assim o Relatório da Comissão Independente para o estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica defende a constituição de uma Comissão de continuidade do estudo e acompanhamento do tema.
Outras recomendações são a adoção do dever moral de denúncia por parte da Igreja e a colaboração com o Ministério Público em casos de alegado crimes de abuso sexual.
O pedido de “efetivo perdão sobre a situação que aconteceu no passado e a sua materialização bem como a formação e supervisão continuada e externa da Igreja Católica na área da sexualidade (sua, e das crianças e adolescentes em articulação com o Serviço Nacional de Saúde).
E apoio psicológico às vítimas do passado, atuais e futuras é encarada como uma responsabilidade da Igreja em articulação com o Serviço Nacional de saúde.
Termino com um pequeno apontamento as recomendações até parecem bem intencionadas para no futuro esta história inenarrável que mancha a credibilidade da Igreja Católica não se voltar a repetir.
Porém de todas estas histórias imperdoáveis é certo salta à vista outra questão. No seio da Igreja católica existe um problema de sexualidade mal resolvida que faz que pelo mundo inteiro grassem tantos casos semelhantes.
A castidade exigida aos membros da Igreja revela pés de barro. A restrição, a proibição de viver uma vida comum de todos os cidadãos vem fazer transbordar crimes horrendos contra os seres mais frágeis que são apanhados no meio desta bola de neve das regras arcaicas de quem decide abraçar a vida religiosa.
A proibição dos padres poderem amar livremente quem quiser como qualquer ser humano têm-nos empurrado para os atos mais perversos. Claro que é imperdoável estes atos contra crianças, ninguém, psiquicamente, normal o pode fazer nem sequer imaginar. Todavia, concluem-se que o problema de fundo prende-se sobretudo com a restrição dos padres de terem uma vida comum como todos os humanos, sujeitos às veleidades do amor e da paixão, obviamente, com pessoas maiores livres e disponíveis e não atacarem indiscriminadamente os seres mais frágeis e indefesos que os rodeiam. Isso não tem perdão nem qualquer tipo de justificação.
O direito a amarem livremente, era, sem dúvida a maior forma de prevenção contra estes comportamentos tão perversos e macabros, indesculpáveis.
Parece que a grande Revolução de mentalidades na Igreja Católica ainda está para acontecer…
Ana Margarida Alves
[1] Fonte: 24.sapo.pt/atualidade/artigos/relatório-sobre-abusos-sexuais-na-Igreja-catolica-o-que-precisa-saber (António Moura dos santos com Lusa)