Quando rir se torna o melhor e o pior remédio...
“Ridendo castigat mores”
Gil Vicente
O bem-estar emocional/social é cada vez mais mecanizado e “anti-natural”. Ontem foi divulgado um relatório realizado pelo “Observatório Europeu da Droga e Toxicodependência” em que se levantava uma preocupação contra a utilização da droga do riso, uma substância (óxido nitroso) que provoca a sensação de euforia e de relaxamento. Segundo o relatório, é utilizada sobretudo por jovens e em pequenas quantidades. Porém, a sua utilização pode causar fortes danos no sistema nervoso, queimaduras graves causadas pela exposição ao frio e danos pulmonares.
Esta notícia é preocupante perante várias perspetivas, por um lado significa que se está a recorrer a substâncias químicas para provocar sensações que deviam ser espontâneas e naturais que estão a trazer prejuízos graves para a saúde dos seus consumidores. Por outro, levanta um pouco a ponta do véu para problemas mais complexas que as várias gerações vivem hoje em dia. Este relatório, faz transparecer que os jovens vivem cada vez mais sobre fortes pressões sociais e psicológicas que os fazem ter que recorrer a substâncias medicamentosas ilegais para atingirem sensações que deviam ser autênticas e espontâneas.
A sabedoria popular está imbuída de variadíssimos provérbios populares que refletem a importância do cultivo do espírito alegre e bem disposto para se lutar contra as adversidades da vida como por exemplo “quem canta seus males espanta”, “rir é o melhor remédio”…
Já desde a Antiguidade clássica que os intelectuais da época consideravam que nos tempos de ócio era importante entreter o povo com momentos de pura descontração e é, disso exemplo, o surgimento de peças de teatro. Inicialmente, o teatro da Antiga Grécia, recorreu à temática da tragédia que terá surgido, provavelmente, no século VI a.c. As tragédias representadas eram inspiradas na religião ou nas sagas dos heróis. Porém, meio século depois, a comédia, passou a integrar as Grandes Dionísias[1] em 488 a.c..
Portugal, também soube dar valor a uma boa gargalhada e a figura dos “Bobos da Corte” e “os Jograis” eram muito apreciados em festas sociais da corte. Claro que o Povo apesar de viver sobrecarregado de impostos e no limiar da pobreza tinha também as suas reuniões familiares de caráter festivo…Obviamente, que a vontade de rir não devia ser tanta como na vida desafogada das classes mais altas…
O pai do Teatro em Portugal, Gil Vicente, tinha um mote que estava subjacente a todas as suas peças de teatro e farsas “Ridendo castigat mores”[2]. Claro que a dinâmica do riso, naquela altura, era um pouco mais rudimentar que o riso mais sofisticado dos dias de hoje. Gil Vicente provocava o riso através da ridicularização de certos grupos sociais e certas personagens da época. A obra Vicentina é tida como reflexo de mudança dos tempos e da passagem da Idade Média ao Renascimento, fazendo-se um balanço de um tempo onde as hierarquias e as ordens sociais eram regidas por normas inflexíveis para uma nova sociedade que começa a questionar a rigidez das ordens estabelecidas.
Assim, ao longo dos tempos o “riso” deixou de assumir um caráter nefasto de outros tempos onde perante o miserabilismo só os “tolos” se riam e passou a ser considerado um importante vetor para se atingir o bem estar físico e emocional.
Assim, surpreende-me que nos dias de hoje as sociedades reprimam tanto o estado de felicidade, principalmente, dos mais desfavorecidos que perante as desgraças da vida, tenham sempre a cara triste e rosto de tal modo fechado sobre si mesmo, sem emoção que seja preciso recorrer-se a substâncias medicamentosas, um tanto ou quanto ilegais para provocar a boa disposição que devia ser intrínseca e natural.
Até no tempo, do “velho senhor”, o vetusto Salazar se desenvolveu esquemas para controlar as populações nos tempos de inatividade laboral. Iniciativas à ocupação dos tempos livres de “salutar” como por exemplo reuniões em grémios e associações onde se realizavam festas e atividades de lazer. Surgiu assim, nessa época, a “Fundação Nacional para a Alegria no Trabalho”, fundação que surge a 13 de Junho de 1935 com fim de criar infra-estruturas destinadas às atividades culturais, desportivas e recreativas dos trabalhadores e das suas famílias com vista o maior desenvolvimento físico e moral.
Assim, ao longo de séculos tanto se fez para a promoção do bem-estar emocional das elites e também da restante população que chega a ser ridículo que nos tempos que se vivem atualmente o “riso” em certos contextos seja reprimido. E aquele que ri é considerado ser de “Palermo”. As populações vivem de tal forma sufocados de problemas e constrangimentos sócio-económicos que a leveza do riso é considerada quase um sacrilégio. Por outras palavras, o que devia surgir, espontaneamente, entre dois dedos de conversa entre familiares e amigos tem que ser induzido com metodologia medicamentosa legal e ilegal. Não é só o “papão” da droga do riso que espreita. Os dados estatísticos, indicam que nunca se vendeu tantos anti-depressivos, como hoje em dia, do género “xanax”…É um facto as pessoas, em geral, andam todas tristes e deprimidas com a “moral em baixo”.
E ainda há quem critique a necessidade de levar sorrisos às amorfas e disformes populações…
Em grupos sócio-culturais mais atávicos, surge a velha máxima de velho do restelo “Muito riso pouco siso”. E até há quem de irrite com as imagens que passam na televisão dos nossos políticos e governadores - que deviam ser o rosto da preocupação nacional e internacional - mal acabam o “sermão” são todos risos, sorrisinhos e apertos de mão… (talvez, seja por isso, que aparecem na sucata muitas televisões com o ecrã estilhaçado!!...)
O riso, para alguns, é muito proibitivo. Em tempos de tamanha crise não pode haver motivos para as pessoas serem alegres e andarem com um sorriso estampado no rosto. Chamam-lhe inconscientes e até há quem se atreva a classifica-los como inimputáveis…
Chega quase a ser chocante que em tempos em que todo o mundo enche a boca para falar de direitos humanos obriguem as pessoas a viverem de tal forma sobrecarregadas pelo “sistema social” que os senhores da moralidade atirem constantemente o “dichote” que só pode haver financiamento laboral para suprimir as necessidades alimentares, tudo o que não passa pelo pão para a boca é acessório. Os tempos livres das populações devem ser momentos de pura apatia da propaganda televisiva sobre a arte de bem entreter ou então ocupados em tarefas domésticas sem fim. Os programas sócio-culturais devem ser restringidos ao máximo. Que Deus nos salve…de tamanho retrocesso, até no tempos duros da Ditadura Salazarista a alegria era aceite no sistema vigente.
Hoje em dia parece música para os ouvidos das autoridades governativas e laborais as temáticas dos problemas: as preocupações laborais para empresa crescer, os problemas familiares, os problemas sociais escarrapachados nas páginas dos jornais e na televisão…enfim, problemas, problemas e mais problemas!...
Parece que se estar sempre com ar de casmurro a remoer na “miserabilidade da vida” das classes mais rasteiras é “o sermão e música cantada” mais bem aceite pela segurança social governativa. Este estado de coisas é um autêntico retrocesso de mentalidades. Apela-se mais à lágrima fácil e ao sentimento de tragédia expresso em múltiplos desabafos chorosos “a minha vida é um drama ou uma verdadeira angústia” que ao sorriso rasgado.
Por vezes, ouve-se numa notícia ou outra que lá para os lados da capital que aplicam a nova vaga de ideias das psicologias do trabalho que nos tempos de “coffe-break”, durante os momentos em que é permitido descontrair e baixar a guarda, os trabalhadores são incentivados a “brincar” através de jogos sociais como a “playstation”, “snooker”, ou outros. A conviver com todos os colegas, a praticar atividades física no ginásio da empresa e muitos outras atividades que vai muito para além dos típicos jantares de Natal. Nesses momentos, até os chefes de equipa “tiram a gravata” e alinham com os restantes funcionários…
Os mentores destas atividades podem parecer um pouco tontinhos ou totós…nada disso, parecem que descobriram a pólvora. Os gráficos de produtividade dos seus colaboradores demonstram que são muito mais produtivos e criativos quando estão felizes. E assim todos ficam, a ganhar…
Ora nem mais…
Claro que hoje em dia o que causa riso já não é tanto o tom, jocoso e crítico mascarado de “bullying”, o gozo ou a “chacota” com um colega mais caricato. Mas, saber rir de si mesmo, das coisas bizarras que acontecem no dia-a-dia laboral ou até um ar de piada vindo do exterior como uma notícia insólita lida na “App” de notícias do telemóvel. O riso vexatório e imbuído de maledicência já não pode ser tolerado, muito menos, praticado.
Não quer dizer que, por vezes, não nos “salte a tampa” e surja um comentário menos inocente de caráter mordaz. Ninguém é santo…hoje em dia!...Mas o gozo gratuito e achincalhador não deve ser permitido por parte do sistema.
E assim é urgente repensar na causa das coisas. Não ler apenas, superficialmente, uma notícia que indica que os jovens (principalmente) recorrem as drogas para obterem momentos de riso e relaxamento, surgindo, logo o alarme social que os jovens andam a drogar-se para se divertirem e isso causa efeitos altamente nocivos na saúde humana. Mas, mergulhar um pouco mais fundo, e pensar no âmago da questão… Porque é que, hoje em dia, é preciso recorrer a substâncias psicoativas para os jovens descontraírem, relaxarem e no limite dar gargalhas tolas sem nenhum motivo e sem sentirem realmente porque se estão a rir. Um ato que devia ser tão natural e intrínseco como a água que se bebe.
E não é só a droga do riso que anda aí agitar as águas também os especialistas andam por aí em reuniões de “terapias do riso”. O que leva a reforçar a ideias que as pessoas andam mais tristes e deprimidas do que deviam e que até precisam de apoio clínico para algo que devia ser inato e espontâneo.
Será isso que sinal que estamos a tornar-nos tão “standartizados” e iguais a todo o mundo, na arte da boa educação, que vamos perder a medalha de mérito dada aos países latinos que são conhecidos por todo o planeta como pessoas, alegres de sorriso fácil e muito bem dispostas.
Será?...
Ana Margarida Alves
[1] As Festas Dionisíacas eram celebrações de caráter cívico-religioso, ou seja, conciliavam aspetos da política e da identidade de Atenas, servindo como fator de agregação da sociedade ateniense. Dentro de algumas dessas festas eram realizados concursos teatrais que, envolvendo competitividade e sociabilização, serviam para suavizar conflitos internos dentro da cidade (fonte: Wikipédia)
[2] A rir corrigem-se os costumes.