Retrocesso Histórico: abortar passou a ser proibido nos EUA

06-07-2022 11:00

 

            Uma decisão do Supremo Tribunal dos Estados Unidos reverte meio século de proteções constitucionais da mulher.

            O Tribunal onde a ala conservadora predomina revogou uma decisão histórica de 1973 conhecida por “Roe v Wade” que deu à mulher o direito de optar se quer ser mãe ou não e determina que os estados podem permitir ou restringir o procedimento.

            Nas palavras do Tribunal Superior “A constituição não confere o direito ao aborto. Roe e Casey são anuladas; e a autoridade que regula o aborto é devolvida ao povo e os seus representantes eleitos”.

            Esta decisão “dinossáurica” faz-nos pensar como é que um país de referência mundial que dá as cartas em quase todas as áreas que vai desde a política, à economia, à ciência, à tecnologia, ao cinema pode ser, simultaneamente, tão conservador ao ponto de tirar à mulher o direito de decidir se chegou à altura de ser mãe.

            Claro que nos Estados Unidos, um país de grande diversidade cultural e pleno de antagonismo onde os hábitos, os costumes são muito distintos. A América vanguardista e moderna opõe-se à América mais conservadora e atávica onde impera o conservadorismo e a moral ainda se rege pelos valores antigos.

            Os filmes “hollywoodescos”, desempoeirados, com espírito aberto que nos transmitem uma ideia de liberdade ilimitada onde as regras e os códigos tradicionais são desafiados constantemente são apenas uma ilusão ótica da verdadeira América.

            Só assim se consegue explicar o fenómeno do “Trumpismo” que no limite da irracionalidade levou mesmo à invasão do Capitólio, por uma multidão fanática desencadeada pela desilusão dos seus seguidores quando se consciencializaram que “Trump” tinha mesmo perdido as eleições, uma atitude reacionária, completamente anti-democrática.

            Mas a “sombra solar”, de Trump continua a pairar no ar. Foi ele que lançou as sementes do conservadorismo em todos os quadrantes da sociedade através das leis retrógradas. Foi ele que levou ao Supremo os Juízes mais extremistas (conservadores). E os americanos continuam a sofrer na pele os resquícios da “Era Trumpista”. E até há quem diga, que os seus fiéis seguidores, continuam nos bastidores a trabalhar ardilosamente, sonhando com o regresso ao poder.

            Mas se fosse só nesta questão que os Estados Unidos deixam muito a desejar…Também, a nível do humanismo, a América é um país repleto de contradições. Apesar de ser um país que ergue alto a bandeira da democracia e dos valores humanos. É um dos países onde a segregação racial é mais gritante. Onde a raça branca dizima completamente a raça negra e tenta afastar as pessoas afro-americanas de todos os lugares da sociedade. Aqueles que conseguem vingar tiveram que ser excecionais e ter uma vontade de vencer sobre-humana.

            Por isso face aos contrastes que existem nos Estados Unidos da América viver em Portugal ainda é uma bênção.

            Um país pequeno, no ponto mais ocidental da Europa, conhecido pelos seus brandos costumes, onde a Democracia, ainda com menos de cinquenta anos está muito enraizada no espírito do povo português.

            Por isso, em Portugal, é o povo quem mais ordena. E assim o aborto voluntário da gravidez foi legalizado por referendo em 2007.

            E ficou registado no espírito das leis que a mulher pode abortar até à décima semana, se assim quiser, sem que seja preciso apresentar razão válida para o fazer.

            Porém, a lei de 16/2007 de 17 de Abril indica que é obrigatório um período mínimo de reflexão de três dias onde é obrigatório apoio psicológico e também é obrigatório acompanhamento por técnico de Serviço Social durante o período de reflexão.

            As mulheres são livres de escolher se estão preparadas física e psicologicamente para a maternidade ou, se, por outro lado, ainda não chegou o momento certo.

            A maternidade é talvez a maior revolução (da vida pessoal) que a mulher pode fazer, sendo transversal a todo o género de mulher.

            Depois de ser mãe, a mulher, nunca mais deixará de o ser. É um papel para toda a vida que exige muita responsabilidade, mas, também traz consigo um mundo de sensações mágicas que entrelaçam mãe e filho para sempre.

            A maternidade revolucionou a minha vida e fez-me descobrir um mundo de sensações únicas. E ainda hoje - apesar de para a sociedade em geral, ser quase um adulto, está a escassos meses de completar 18 anos - um cordão umbilical invisível une-me ao meu filho e me unirá para sempre e para mim, o meu filho, será sempre um menino.

            Contudo, quando soube que ia ser mãe foi como se o mundo tivesse desabado. Entrei em pânico. E julguei que ainda não estava preparada para assumir esse papel. Não era o momento. Ainda tinha outros sonhos por concretizar.

            Mas as circunstâncias incontornáveis da vida empurraram-me para a maternidade e, se, assim não tivesse sido. Talvez hoje fosse uma pessoa mais incompleta porque quis o destino que não tivesse mais filhos, além daquele ser luz que preencheu a minha vida de uma forma única, despertou em mim novos objetivos, novos sonhos, uma nova força para enfrentar as adversidades da vida. Naquela época, não lutava só por mim e pelo meu marido (atualmente “ex”), mas, por um ser frágil e indefeso que exigia de mim uma atenção redobrada.

            Por isso, parece-me importante que a mulher seja dona do seu próprio corpo e possa optar. Todavia, é também essencial haver um período de reflexão como está previsto na lei portuguesa. Em que a mulher – ou até mesmo a adolescente, claro com menor incidência, ainda bem que assim é (deixemos as jovens sonhar…) – faz uma introspeção sobre o que poderá vir a ser o novo desafio da sua vida.

            Porém, as circunstâncias da vida é que irão definir se avança para a Interrupção Voluntária da Gravidez. Muitos poderão ser os motivos, uma gravidez não desejada, fruto de uma relação fortuita, uma violação, a falta de condições sócio-económicas, a imaturidade do casal…e muitas mais.

            E tudo isso deve ser refletido.

            Contudo, mais importante do que as circunstâncias é a relevância da consagração do direito ao aborto. Do direito de optar. Da liberdade da mulher decidir se estão reunidas as condições para ser mãe em pleno direito ou se adia esse plano para mais tarde.

            Por isso, a proibição do aborto, nos Estados Unidos parece-me um retrocesso insanável.

            Joe Biden, o presidente dos Estados Unidos, alertou sobre esta questão “A vida e a saúde de milhões de mulheres está em risco. Os Juízes defenderam a decisão de permitir o aborto durante 50 anos, agora o Supremo retirou um direito fundamental aos Estados Unidos, é uma decisão distante da vontade dos americanos. As mulheres violadas serão obrigadas a ter bebés. O Congresso tem de restituir o direito ao aborto.”

            Porém o poderio da Justiça e o conservadorismo excessivo germinado pela “Era Trump” impõe-se sobre a vontade do Presidente e de grande parte dos americanos.

            O direito à opção deixou de ser uma solução viável e o corpo da mulher, como gerador de vida, passará a estar sobre o jugo da Lei. E a maternidade, em vez de um planeamento mútuo pleno de cumplicidades passou a ser como nos tempos indos fruto do acaso. Com todas as complicações que possam daí advir.

                                                                                                                                                                         Ana Margarida Alves