Uma espécie de alienação: A incansável luta contra o luto
Por vezes morremos por dentro e continuamos vivos. Morremos sem razão ou porque pura e simplesmente deixamos de acreditar que no mundo à lugar para nós.
Morremos porque ficamos sempre presos ao óbvio fechados na caverna de Platão e não nos conseguimos libertar das correntes para ver mais além.
Morremos porque nos roubam o brilho no olhar.
Morremos sempre que um projeto idealizado se estilhaça em pequenos nadas.
Morremos porque enveredamos por caminhos que não nos conduzem a lugar nenhum.
Morremos por dentro sempre que as relações que julgamos perfeitas se desmoronaram como castelos de princesas com pés de barro.
Mas de todas as formas de morrer, a mais dolorosa e dilacerante é quando sentimos que perdemos um filho, mesmo que na realidade ele ainda continue algures nalgum lugar, longe de nós.
Claro que sabemos que mal eles nascem e dão o seu grito do Ipiranga para a vida (subentenda-se, primeiro choro) ou quando dão os primeiros passos já estão a caminhar para o futuro.
Khalil Gibran expressa numa das suas reflexões que “Os Vossos filhos não são vossos filhos(…) Vêm através de vós mas não são de vós. E embora vivam convosco, não vos pertencem. Podeis entregar-lhes o vosso amor mas não os seus pensamentos (…)pois as suas almas moram na mansão do amanhã que vós não podeis visitar nem mesmo em sonho.”[1]
Claro que é preciso não esquecer que este pensador tinha origens árabes e apesar de ser considerado um liberal viveu no século dezanove onde as famílias se regiam por valores arcaicos, onde o amor era apenas uma conveniência, o homem tinha que lutar de forma feroz pela sua sobrevivência e a luta pelos direitos humanos apesar de já bastante teorizada o seu peso era muito incipiente. Tem, assim, uma visão radicalista dos laços que nos prendem aos nossos filhos porque apesar de sabermos que um dia eles vão ganhar asas e voar. Porém, vão regressar sempre ao seu ninho de origem, não com a frequência que desejamos, mas de uma forma intermitente. E os laços primordiais de amor e afetividade são para sempre um eterno retorno. Educamo-los para afetividade para que nunca se esqueçam dos laços familiares que os ajudaram a crescer.
Porém, há mães que perdem os filhos cedo demais. Muito antes dos laços se estreitarem, muito antes de poderem deixar marcas indeléveis para que continuamente se dê o eterno retorno e não se esqueçam do aconchego dos braços da mãe. Claro que é preciso salientar que, em Portugal, estas são uma exceção à regra, porque por norma os tribunais portugueses entregam os filhos aos cuidados das mães. Por isso, será importante debruçar-nos sobre esta temática, já que trata-se de situações que fogem às normas. E essencial dar voz às mães silenciadas.
No momento em que se dá esse atroz e incompreensível, hiato com as mães mais vulneráveis estas entram em “Luto” de filhos ainda vivos.
O psicólogo Eduardo Sá, no seu livro “Más maneiras de sermos bons pais”, p. 115, diz-nos que “o luto representa a dor, quase enlouquecedora, pela ausência, mas, também a consciência de persistir, mesmo perante ela, em tudo o que nos liga à vida. Por isso, talvez o luto por um filho doa como mais nenhum.” Frisa ainda que “(…) se os filhos são a eternidade possível dos pais, a sua morte será para estes como se morressem duas vezes.”
Na perspetiva da mãe, a separação dá lugar ao luto permanente.
Na perspetiva, do filho que foi arrancado dos braços da mãe, a separação dá lugar a espaço sem memórias e de vazio.
A mãe esteve sempre ausente dos momentos mais importantes da sua vida. Não aparece nas fotografias do albúm de família, nunca esteve sentada ao seu lado no dia de Natal, não o ajudou a fazer os T.P.C.`s, deixou de o acompanhar à escola, nem teve voz em qualquer reunião de pais.
Também não foi a mãe alienada que lhe ensinou atravessar a passadeira e o avisava para ter cuidado com os carros para não ser atropelado.
Não lhe fez um chá quente de limão com uma colher de mel quando ficou com gripe. Nem lhe preparou a canja de galinha para se livrar de uma indisposição alimentar.
Nem acompanhou de perto as turbulências da adolescência. Nem foi escutada nas decisões referentes à escolha do seu percurso escolar.
As suas memórias da mãe são quase uma folha em branco. Será, por isso, pedir-lhe demasiado ao seu coração que sinta saudades. Ou que sua própria iniciativa, telefone à mãe nem que seja no seu aniversário ou até, no limite, no clássico Dia da Mãe.
Todavia, a esperança mora para sempre na alma das mães que entram em luto por filhos vivos e, por isso, é essencial substituir o “luto” pela “luta” contra as adversidades da vida e continuar de forma resistente e compulsiva numa verdadeira batalha contra o tempo pelo direito de criar memórias e pelo direito ao não esquecimento. Um desafio difícil, mas, não impossível. Haja esperança…
Ana Margarida Alves
Lic. Jornalismo
[1] É preciso salientar que na minha pesquisa encontrei várias traduções deste poema inserido na obra O profeta de Khalil Gibran, optei por esta (www.indodamatrix.com.br, consultada em 8.06.2022).